Dor

“A dor é uma janela por onde a morte nos espreita”.

Mia Couto

Não quero morrer, mas não posso viver dessa maneira. Não quero morrer como meu filhinho caçula e não quero viver igual minha filha mais velha. Por isso que eu ando assim, desse jeito, estressada.

Não consigo fazer nada direito, daí tomo remédio. Não quero beber cachaça feito meu marido bebe, não quero usar droga que nem minha filha. Tenho que sobreviver, tenho que cuidar do meu neto. Mas, tô cansada. Tô andando numa ponte que sempre cai. Não sei mais o que fazer, não sei mais o que não fazer.

Meu marido anda bravo comigo, minha filha andava triste comigo, meu neto tem medo de mim. Eu mesmo tenho pena de mim. O que será de nós? Fui na farmácia ontem, peguei os tarja preta, tomei um monte, dormi. Acordei mais sozinha ainda. Procurei meu neto. Nem sinal dele. Desespero em mim. Tudo pode sempre piorar. O avô deve tá bêbado em algum lugar. A mãe em alguma boca. E o menino, responsabilidade minha, sumido. O que fazer, Jesus? Vou correr louca no meio da rua, vou correr...

Corro contra o vento e contra todos, segurando o vestido, contendo o ódio. Carros e motos passam por mim. Tenho medo. Tenho pânico de carros, desde o dia em que o freio do carro velho do meu marido falhou. Desde o dia em que eu falhei e deixei a chave na mesa. Desde o dia em que a filha desceu com o carro em cima do irmão caçula.

Daquele dia para cá todos nós corremos uns dos outros: meu marido corre pro bar, minha filha pra boca e eu para o quarto. Naquele tempo meu filhinho caçula corria livre como uma formiguinha sobre a grama, até aquele dia. Naquele dia todo mundo errou e parece que continua errando porque a gente continua sofrendo.

No começo sofremos todos juntos e bastante. Pensei que a dor ia passar como uma borracha em cima de uma letra torta. Não passou, não apagou. A dor é uma navalha amolada na lembrança.

Eu fui ficando doente, meu marido foi ficando bêbado e minha filha drogada. Mas, eles viviam. Ainda viviam fora de casa. O marido arrumou uma amante, a filha conseguiu um problemático feito ela. Só eu remoí remorso e solidão. Até o dia que a filha apareceu sozinha também com o meu neto na barriga.

Fizemos um trato que ela cumpriu: o filho seria meu. Ela deixou a criança e nos deixou. Foi fumar sua culpa em outra freguesia. O marido gostou da cara do menino porque, disse, se parecia com ele. Mas era só a criança chorar para ele fugir. Nunca vi meu marido chorando. Restamos a criança e eu. Éramos nós dois contra o mundo. E eu sabia que uma hora ou outra o mundo ia bater na gente de novo. E bateu.

Vi as luzes acesas. Uma multidão. Os anjos de vermelho. Vi um corpinho sobre a grama e depois, nada. Desmaiei. Acordei no hospital. Um nó na garganta que eu queria destruir com as mãos. Não quero abrir os olhos, não quero ouvir ninguém. Me deixem morrer.

Mas fui acordada por vozes, sussurros. Algum tempo se passou, me colocaram numa cadeira de rodas e me levaram até ele. Fui indo como em um túnel escuro e deserto. Foi só depois de ouvi-lo que pressenti que ainda estava viva. Ele disse apenas uma palavra, mas eu entendi tudo:

— Mãe!

make
Enviado por make em 12/03/2023
Reeditado em 13/03/2023
Código do texto: T7738729
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