O Hóspede

Ela vivia se perguntando: Porque? Porque que de todos aqueles milhões de embriões, o dela havia saído como vencedor!? Preferiria ter cedido o lugar a outro. Talvez este seria hoje alguma personalidade importante. Seria quem sabe um doutor de alguma coisa, ou quem sabe um engenheiro, ou político também. Mas não, claro que não, tinha que ser ela, uma fodida de merda. Quarenta e quatro anos nas costas e sem muita perspectiva de vida, ou vontade de viver. Devendo até o fundo das calcinhas. Tinha que aguentar bucha de patrão arrogante todo santo dia. Ao menos aquele saguão enorme do aeroporto lhe proporcionava alguma distração. Mas era todo o dia a mesma coisa. Levantar as 4h da manhã, preparar a marmita, correr ‘pra’ estação e aguardar o trem das 5h. No trajeto ia beliscando algumas bolachas Água e Sal e vez ou outra uma banana ou maçã. Chegava pontualmente às 6:45 no aeroporto, no táxi do seu Manoel, com quem ela já tinha acertado ‘pra’ ficar lhe esperando na estação. Às 7h batia o ponto e ia se apresentar ao Aurelindo. Aquele miserável. Ela sonhava com o dia em que teria o prazer de lhe descer a porrada. Parecia que ele tinha gosto de infernizá-la, e assediar. Babaca. Hoje havia sido escalada ‘pra’ limpar o saguão C, embarque e desembarque internacional. Era o mais movimentado, mais barulhento, mais sujo, mas era o que mais a distraia. Via gente de tudo quanto é lugar do mundo. De tudo quanto é cor, de tudo quanto é estilo. Uns pensava ela, pareciam ter saídos daquelas revistas de moda chique que ela folheava enquanto usava o banheiro em casa, outros pareciam aqueles caras da TV, aqueles com um lençol enrolado na cabeça e uma barba que parecia não ter sido cortada a anos. Com esses ela ficava meio pé atrás. Nunca limpava muito perto das coisas deles. Morria de medo de acionar uma mala-bomba e ir pelos ares. Sua vida era sem graça, mas não queria sair dela agora. E tinha os franceses, os frescos pensava ela. Como eram metidos, e cheirosos. Sempre olhavam torto ‘pra’ ela, por isso, sempre dava um jeitinho de importuná-los. Ora trombava neles de propósito, ora lhes empatava o caminho, varrendo a sujeira ‘pra cima de seus pés. Se divertia com as caretas que faziam. Por isso, já havia acumulado uns pares de advertências. Estava pouco se lixando, era só a tratar com um pouquinho mais de respeito. Assim como fazia o elegante Sr Tadeo. Estava sempre indo e vindo de algum lugar. Todo engomadinho e cheiroso. Era italiano. Ela jurava que ele traficava alguma coisa. Ele sempre ficava um tanto incomodado quando os guardas demoravam por perto dele. E ela já havia visto vez ou outra ele passando dinheiro ‘pra’ um dos alfandegários. Se ela via, como ninguém mais via? Num local cheio de câmeras como aquele. Esse ó poder do dinheiro. Se você tem muito, pode fazer ‘sumir’ as coisas erradas que você faz, pensava ela. Não era o seu caso, por isso tinha que trabalhar feito jumento e da forma mais correta possível, que ela conseguisse. Hoje ela ainda não havia batido nenhuma carteira. O Luís das câmeras já estava no pé dela, queria receber. Tinha um acordo com ele. Ele dava uma ‘travadinha’ nas câmeras e ela fazia a festa, e dividia meio a meio com ele. Não sentia muita culpa. Essas ‘travadinhas’ ocorriam em todo os saguões. Atualizavam os sistemas de segurança todo ano, mas sempre davam esses ‘probleminhas’. Enfim, sempre que o Sr Tadeo a via, lhe abria um sorriso e acenava com a cabeça. Ela ganhava o dia. Era seu “crush”. Olhou pela enésima vez para o relógio, agora sim, meio dia, hora do rango. Saia do saguão o mais depressa possível, ‘pra’ não correr o risco de alguém a parar ‘pra’ limpar alguma coisa e assim empatar seu horário de almoço. Esgueirando-se pelos corredores de serviço, chegava até o refeitório. Parecia um daqueles refeitórios de escola. Cheio de mesas e cadeiras, e apenas 03 micro-ondas. Era sempre uma muvuca. Hoje ela deu sorte, ainda não tinha muita gente. Não ia ter que comer comida fria. Eram só 2h de almoço, e almoçavam cerca de 150 pessoas por vez, não dava ‘pra’ ficar esperando. Sueli dos banheiros e Joana manobrista já lhe aguardavam em uma das mesas. Almoçavam sempre juntas. Era a hora de por as fofocas em dias e reclamar da vida. Às 14h voltava ‘pro’ batente, ia contando os minutos até o relógio bater às 17h. Quando o alarme do celular despertava às 17h, mal olhava ‘pra’ trás. Catava suas coisas, e corria ‘pra’ conseguir pegar o trem das 18h. Até às 20:30h já estava em casa. Era uma quitinete apertada, não muito arejada, mas era seu canto. Ali ninguém lhe perturbava. Mesmo entre o mofo e os vizinhos esquisitos, conseguia descansar em paz. Corria ‘pro’ chuveiro, tirar a ‘inhaca’ do dia, e depois catava um macarrão instantâneo no armário e ia saciar a fome. É a isto que se resume a vida humana ? Questionava ela. É só isso que terei? Este é o preço que tenho que pagar pela rebeldia de meus anos juvenis!? Ser condenado a ocupar o corpo desta infeliz e pobre mulher pobre!? As vezes sinto tanta pena que quase a faço saltar nos trilhos e dar cabo de sua existência. Ao menos eu teria o gosto da liberdade por alguns segundos. Até encontrar um novo hospedeiro e apossar-me de sua triste vida humana. Por hoje a deixarei descansar. Amanhã, talvez não.