LEMBRANÇAS

🎼... Correm os meus dedos longos,

Versos tristes que invento.

Nem aquilo que me entrego

Já me dá contentamento🎶

Sentiam -se peixes fora d'água naquela festa da família. Jesus havia chamado à todos, menos a eles. Todo mundo só no suco e Coca cola e eles na cerveja e nas batidas. Restava ao cunhado, um tipo reservado, ouvir toda a verborragia etílica da esposa de seu irmão caçula.

-...A gente tem que acreditar que as coisas vão melhorar, que vão dar certo. Mas de vez em quando é bom lembrar do passado. As coisas boas, o que é de ruim, que machuca, a gente tem que esquecer.

Já cansado de horas de monólogo ele pede para que ela escute quieta uma estória:

- Eu tive um grande amigo, amigo de verdade. Nós andávamos pelas ruas e vielas da favela. Os dois com as camisetas penduradas nos ombros, no sol de "rachar mamona", os peitos estufados igual pombo cantando juntos Caixa Postal:

Se põe de pé e mostrou como andavam:

🎼... Digo eu já fui lá, bati, liguei

Deixei recado na caixa postal

Não sei, não mais vi🎶

- Eu até esquecia de me perguntar de que é que eu estava fazendo naquele lugar. São lembranças maravilhosas! Cumprimentavamos a comunidade inteira. Das tias aos traficantes, dos trabalhadores aos noias. Se eu for lá hoje ou escutar essa música as lembranças vêm. Mas não é mais o mesmo. O lugar não é igual, nem o tempo, nem eu, somos os mesmos. Como dizia o filósofo: "É impossível alguém se banhar duas vezes nas águas do mesmo rio".

Confusa a cunhada pergunta:

- Você disse tinha um amigo. Vocês não se falam mais?

- Ele morreu. Em parte por minha culpa. Um dos filhos dele morreu de overdose de lança perfume. Eu dei a ele uma bolada para ajudar do enterro. Eu o conhecia, sabia das dificuldades dele. Devia ter entregue o dinheiro para a esposa. Meu camarada encheu o nariz de cocaína. Sofreu um AVC hemorrágico. O enterro dele foi 15 dias depois do funeral do filho. Este é o grande ponto. Uma lembrança é inseparável da outra. O grande segredo está em saber:

- Passou! Nada pode trazer o bom de volta ou apagar o ruim. Conseguir aceitar isso é o verdadeiro segredo.

Ela o olhou em silêncio pelo tempo de um cigarro:

- Acho que bebi demais. Boa noite cunhado, vou dormir.

- Vai lá cunhada. Boa noite.

Depois de cinco minutos de quietude ele fala sozinho, melancólico:

- "The rest os silencie..."