Sacripantas

Zími acompanhou Silvano num sábado pela manhã, para que fizessem um serviço de carreto na Vila Mariana.

Às oito horas saíram da garagem do prédio onde moravam, no centro de São Paulo.

Era um trabalho rápido, e já estariam livres na hora do almoço.

Zími, com uma camiseta dos Circles Jerks feita em casa, receberia um pagamento modesto, talvez simbólico, mas seria suficiente para as suas necessidades imediatas, até que recebesse mais algum dinheiro trabalhando como copy writer ao longo da semana seguinte.

O trânsito estava esquisito, mas era perto e logo descarregaram da Kombi caixas de cosméticos para um salão de beleza.

Naquela rua, numa distância pequena, três bares disputavam clientes entre as poucas pessoas que passavam ali, sob o sol forte que fazia naquele dia.

Um dos bares tinha um bom público e era o maior deles. Era também o mais novo dos três, tendo sido inaugurado semanas antes.

O outro era intermediário e ainda assim grande, e havia ali um sujeito tomando cerveja junto ao balcão.

O terceiro bar era o menor e mais modesto, e também o mais antigo entre eles, e estava vazio desde o momento em que Silvano estacionou a Kombi por perto.

Fazia muito calor em São Paulo.

Silvano disse que Zími precisava ver o show que aconteceria no bar intermediário às catorze horas.

Silvano explicou que assistiu ao show do mesmo sujeito que tocaria ali naquela tarde, e talvez em todos os outros sábados.

Disse que aquilo era uma inspiração e um encorajamento para começar uma carreira musical independente, como o duo Crop Circles, banda em que Zími é baterista e vocalista, junto de Mila Cox, que era baixista, vocalista e também usava sintetizadores. Eventualmente usavam guitarra nas gravações, mas não nos shows.

Então estavam Zími e Silvano fumando um baseado encostados na Kombi depois de feita a entrega dos cosméticos.

Terminaram o baseado e Silvano tirou de algum lugar de dentro da Kombi uma garrafa de cachaça de amora, que havia sobrado de um lote comprado no dia de um show em Itatiba.

Por volta das catorze horas, sob calor excessivo, um cara estacionou uma Parati na frente do bar intermediário. O sujeito que tomava cerveja desde cedo ainda estava lá. A kombi estava na mesma calçada, poucos metros adiante.

Silvano pediu que Zími prestasse atenção a tudo que o sujeito fizesse.

Ele montou o kit do banquinho, microfone e um amplificador, de onde saíam bases pré-gravadas, sobre as quais ele tocava violão.

Zími pensou que Silvano estava fazendo piada com ele.

O cantor nem havia começado o show e Zími já havia visto nele toda a canastrice e picaretagem possíveis.

Do outro lado da rua, o bar menor e mais antigo continuava vazio, e o proprietário estava ali na frente, observando o cantor com a cara de quem sabia que uma presepada estava por vir.

Oficialmente o público era de apenas uma pessoa, o sujeito que bebia ali sozinho desde a manhã. Ele parecia desinteressado.

Zími entendeu na primeira música a razão pela qual Silvano havia pedido a ele para que assistisse àquilo. Pegou uma folha do cadernoque levava para onde quer que fosse, e escreveu algo.

Ficaram ali encostados na Kombi sorvendo a cachaça, até que Silvano foi até o balcão do bar em que o cantor se apresentava, pegou duas latas de cerveja e voltou para a Kombi.

Zími estava num ótimo momento, vadiando sábado à tarde, depois de trabalhar pela manhã.

Silvano lhe deu a lata de cerveja, para se refrescarem da cachaça de amora, e disse a Zími que no fim de semana anterior o show do cantor também foi um fracasso, mas havia algumas pessoas a mais.

Embusteiro que era, o cantor contava para quem estivesse em volta que tinha agenda lotada de shows, que vivia exclusivamente de música e já tinha tocado na Europa. Silvano ouviu as conversas, mas na ocasião não participou.

Dessa vez só havia os dois ali para que o cantor puxasse conversa. O sujeito que bebia no balcão não demonstrava qualquer reação às tentativas do cantor para estimulá-lo.

Depois que Silvano voltou com a cerveja para a Kombi, o cantor ainda tocou mais uma música, antes de dar uma pausa, que acabou sendo definitiva.

E antes dessa pausa, Zími comentou com Silvano que o cantor estava bem cheirado. Comentou ainda que tinha certeza que ele mandava com a narina esquerda.

Silvano constatou que o cara realmente parecia estar tentando morder a orelha.

O cantor tirou o violão do colo, e se levantou tentando inutilmente disfarçar seu constrangimento.

Pediu uma cerveja à garçonete, que do lado de dentro do balcão parecia estar lamentando demais por estar ali naquele sábado à tarde quente, ouvindo o sujeito cantar Legião Urbana em ritmo de pagode e outras aberrações, até que finalmente desistisse.

Quando o cantor, com a cerveja na mão, fez menção de se dirigir á Kombi, Zími disse a Silvano: 'Agora!'

O sujeito então começou a falar, se apresentando como 'o cantor', e os dois apenas olhavam para ele, sem falar nenhuma palavra, e nem esboçar qualquer reação que não fosse fumar e se tomar goles de cerveja e do drink de amora.

A garçonete observava do lado de dentro do balcão, tentando disfarçar o riso quando percebeu o que poderia estar acontecendo.

O cantor repetiu a conversa ouvida por Silvano, sobre agenda de shows, ter tocado na Europa e sobreviver como músico.

Até que mencionou alguns artistas que gostava, e quando citou a Janis Joplin, Zími se levantou, tirou a folha de caderno dobrada do bolso de trás e a entregou ao cantor.

No papel estava escrito que a Janis Joplin é muito chata, e que a música 'Mercedes Benz' é a mais chata da história, dividindo o pódio com 'Hotel California' dos Eagles e 'Sultans of Swing', do Dire Straits.

O cantor leu, e embasbacado, virou-se e foi de volta para o bar em que tocou. Encostou-se no balcão, sob o olhar não menos embasbacado da garçonete, que trabalhava olhando para o relógio sem parar.

Antes de entrar na Kombi com Zími e voltar para casa, Silvano foi até a bela área de self-service do local, que estava vazio.

Pegou um recipiente de isopor, para marmita e o encheu com todos os ovos de codorna que haviam ali. Então pegou mais uma lata de cerveja para ele e outra para Zími, pagou e então foram para a Kombi

No caminho curto entre a Vila Mariana e a República, Silvano comunicou a Zími que se lançaria na música. Aquele cretino que eles haviam assistido tinha algo que Silvano não tinha até então, que era coragem de se apresentar em público.

Como assistiram ao que de mais patético poderia acontecer numa tentativa mal sucedida de entretenimento, agora Silvano, sabendo que poderia contar com as estratégias de Mila Cox para se apresentar ao vivo deixando a timidez de lado, e os pitacos de Zími na produção do disco no estúdio caseiro, estava encorajado e poderia abrir os shows dos Crop Circles.

Compor as músicas e gravá-las não seria problema, pois ele já tinha idealizado o que seria o primeiro disco

Músicas de dois minutos, psicodelia dos anos sessenta, misturada com punk rock e alguma canastrice latina seriam suficientes para a estréia em disco.

Dez faixas e menos de meia hora de duração.Sairia em vinil, cd e K7.

Chegaram ao prédio em que moravam e cada um foi para sua casa.

Zími contou para Mila Cox sobre o rolê.

Ela falou que já tinha pensado em Silvano como músico, seguindo a linha de Bob Log lll ou Dead Elvis.

Ela disse que estava apenas esperando o momento oportuno para dizer isso a ele.

Zími começou a contar a história do cantor e ela começou a fazer café.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 29/03/2023
Reeditado em 30/11/2023
Código do texto: T7751504
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