Fogueira Apagada

Andréa Farias

Recorto triângulos nas folhas de revista com o olhar na porta principal. O cérebro move a tesoura de maneira mecânica. Só crianças de avental branco, que entram e saem. Milena para cá, Milena para lá. Aprenderam o meu nome rápido. ― Sim, senhores comandantes, já acabei ― brinco, para disfarçar o tédio. Coitadinhos, não têm culpa. Devo pendurar logo as bandeirinhas que se acumulam na caixa de papelão. O menino que tem a máscara cirúrgica na boca toma a iniciativa. Quer que eu o ajude a prender as pontas dos barbantes nas diagonais da sala. Levanto-me do banquinho em formato de cogumelo. Ergo-o no colo para fazer o serviço. Assisto-o, orgulhoso, colar as bandeirinhas. O vai-e-vem da porta me distrai. As atendentes começam a trazer as bandejas. Bolos cortados em quadradinhos, passoquinhas, saquinhos de pipoca, pinhão, pés-de-moleque e quentão de suco de uva. Atenho-me às duas gordinhas metidas em roupas brancas que tagarelam sobre os maridos enquanto trabalham. Disfarço com um sorriso amistoso o olhar analítico que lançara sobre elas. Ajudo a distribuir os quitutes sobre a mesa. Organizo os copos, colheres e pratos de plástico. A enfermeira de jaleco cor-de-rosa chega esbaforida. Observa a sala de ponta a ponta. Elogia a decoração. Agradece-me. Entrega-me um chapéu com duas trancinhas penduradas. Envolvo os cabelos num coque para ajeitar o chapéu. Ela pergunta se já pode chamar as crianças. Respiro fundo e faço que sim com a cabeça.

Eles chegam aos pares, como dança de quadrilha. As mães vêm logo atrás, emocionadas, a empurrar carrinhos de soro e cadeiras de roda. A cena me envolve. Dá tristeza pensar que tenham de ficar enfurnados ali num domingo ensolarado. Bem que a terapeuta dissera que eu esqueceria um tanto das minhas neuroses se me doasse o pouco que fosse”. A tese me vem com ares de certeza. Aproximo-me mais. Alguns senhores de estetoscópio no pescoço espiam-nos pela fresta, atraídos pelo zumzum. Varrem a sala com os olhos e acabam sobre mim. Então sorriem, pretensiosos. Velhos demais. Desvio a atenção para as meninas. Parecem bonecas de louça. Têm pintinhas pretas nas bochechas, desenhadas com lápis de olho. Os meninos, bigodinhos. “Será que um dia ainda vou ser mãe”. O pensamento me arrepia. Açoita rápido e dolorido como chicotada. Fujo do segundo golpe. Olho ao redor.

O rapaz vestido de caipira me sorri com o dente da frente pintado de preto. Ele carrega um violão, puxa cantigas juninas para a garotada. Aproveita o ensejo para fazer-me um galanteio.

― Olha só o que a moça bonita fez. Está lindo demais, não está criançada? ― ele força o sotaque roceiro, apontando para a fogueira que improvisei com papel crepom amarelo.

― Sim. ― eles respondem em coro. O elogio me reabastece. Pego pela mão a menininha que tem esparadrapo num dos olhos. Circulo ao longo da sala de braço enganchado ao dela. Ela gargalha. Eu me entusiasmo. O rapaz nos acompanha, trazendo o resto da meninada. Observo-o com o rabo do olho. Algumas enfermeiras também o fazem sem que ele perceba. Uns 30 anos, magro definido, bastante jeitoso. Elas cochicham entre risadinhas. Ele as ignora. Atende os pequeninos. Algo me diz que é um daqueles humoristas fracassados que vende cartões postais nos coletivos. E daí? Puxo papo. Peço que toque aquela cantiga que fala de São João acendendo a fogueira. As crianças se amontoam ao nosso redor. Ele ajeita o violão no peito. Pego no colo a garotinha de fralda que se agarra às minhas pernas. Vejo brilhar na mão esquerda do rapaz a aliança dourada, enquanto ele dedilha os primeiros acordes. A canção me soa melancólica. Mas as crianças se divertem, cantam junto com ele. A menina resmunga, ensaia um princípio de choro. Afasto-me um pouco com ela. Recosto-a ao peito e a embalo até acalmar a minha tristeza.

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Andréa Farias
Enviado por Andréa Farias em 14/12/2007
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