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-O que está lendo? - Meu pai chegava de surpresa com alma penada, o que sempre assustava, ele dava a risadinha debochada de quem tinha feito de propósito.

-“O Mito de Sísifo ” é um ensaio sobre um homem em busca de sua essência, de um sentido na vida, Escrito por Albert Camus em 1941 - eu apontei para a cristaleira – Achei na cristaleira que comprou da professora.

-O mito de Sísifo fala sobre um personagem da mitologia grega considerado o mais inteligente e esperto dos mortais , parece que ele desafiou e enganou os deuses e, por isso, recebeu um castigo terrível: rolar uma grande pedra montanha acima por toda a eternidade. Sua história foi usada por Camus como representação da inadequação do ser humano em um mundo sufocante e absurdo, li esta porcaria, indagação da grande questão filosófica: o suicídio – os conhecimentos de mitologia do meu pai eram sólidos , pegou o livro da minha mão, já sabia o que ele pesava de Camu, ele foleou o livro , foi então que caiu uma foto antiga de dentro do livro.

Na foto havia uma mulher e um homem muito mais velho, ela cabelos pretos estilo anos cinquenta, ele barba e bigode grisalhos, cuidadosamente aparados, olhos claros, entre o verde e o azul, pareciam íntimos.

Meu pai pegou um plástico, envolveu a foto e o livro e disse:

-Isso não é seu Jota, então não pode pegar pra você, vamos devolver – ele se virou, ignorando o que eu poderia falar e acrescentou - vou cortar o cabelo, te levo na casa da Senhora Leila, você pede desculpas, entrega o livro e a foto e volto em trinta minutos pra te pegar.

A casa ficava no centro da cidade, próximo a Catedral Metropolitana de Vitória. A Catedral começou a ser construída em 1920 e foi concluída em 1970.

O centro tinha uma vida própria, gente que parecia estar em outra época, suas ruas apertadas, arquitetura que misturava o tempo, porém lembrava muito mais o passado que o futuro, não era meu local preferido.

Toquei a campainha, esperei uns minutos a porta abriu e uma senhora muito magra, bem-arrumada, elegante, certamente despertava a curiosidade dos jovens nas festas.

Ela usava um vestido claro que dava uma leveza ao seu andar, nos braços colares, pulseiras, estava maquiada como GRACE KELLY, do filme AMAR É SOFRER, abriu o pequeno portão de ferro, ficou bem na minha frente.

Que loucura! A foto me transferido para o passado de uma maneira obscura eu via a jovem da foto na minha frente, mesmo sorriso, não consegui ver os danos da passagem do tempo.

-Oi José, seu pai veio com você? Ora, ora quase não me acha em casa, seu pai não é muito pontual – ela disse me abraçando, fez um gesto para que eu entrasse - ele vai vir pegar o restante dos móveis amanhã? Estou trocando tudo por coisa moderna.

-Vai sim dona Leila – disse estendendo o livro e a foto, ainda do lado de fora – isso é seu, estava no forro da cristaleira.

Ela sorriu.

-Olha só, acho que meu marido Oscar escondeu lá, ele amava Camu, seu pai parece que odeia – eu pisquei os olhos, fazia isso quando estava nervoso, ela percebeu e completou - conversamos sobre o livro A peste, sabe o que o seu pai me disse José e ele me disse que não existe um único personagem feminino com destaque naquele romance, sabe que ele está certo – ela sorriu e voltou-se para a foto.

Virei para ir embora e amargar uma longa espera por meu pai na esquina, ela leu meus pensamentos.

-Vamos José, vamos tomar um café, seu pai falou pra mim que vai demorar meia hora, quando seu pai diz meia hora, é mais que uma hora e meia – verdade seja dita: professora Leila conhecia o meu pai.

Ela fez o café, alguns biscoitos, pegou a foto e começou a falar:

“Foi no final da década de sessenta, eu era jovem, tinha dezenove, estava no terceiro ano de direito do Largo São Francisco, larguei no quarto ano, fui estudar letras, que era o meu real interesse”. - ela disse apontando para foto.

Ela viu que fiquei sem jeito e ao mesmo tempo curioso.

-Vou te contar, nome dele era Henrique, ele era professor de cultura inglesa, tomamos um café, conversamos sobre livros, então ele disse uma citação saborosa: “a coisa nenhuma deveria ser dado um nome, pois há perigo que esse nome a transforme”, me encantei, um homem que lia Virgínia Wolf, era tão culto e tinha um olhar... - ela parecia não achar o termo para transformar em palavras o olhar de Henrique, depois colocou a mão no meu ombro e completou -, um olhar que traduz tudo que a pessoa é.

-Não casou com ele?

-Ele tinha trinta e nove anos a mais que eu, isso não era permitido antes, e acho que nem é permitido hoje, nem pelos liberais de esquerda, pois os liberais também tem seus preconceitos, ficamos juntos em um amor clandestino por algumas semanas, depois ele pediu demissão do cargo de professor, teve medo do que falariam de mim, e do que poderia ser acusado, sofreu, mandou cartas e morreu.

-Nunca mais se encontraram?

-Não, eu era uma criança e ele uma senhor maduro solitário, como diz o Pedro Nava: “A experiência é um farol de carro voltado para trás” homens maduros tem sempre o seu minutinho de Vladimir Nabokov, coitado morreu entregue a essa ilusão de um amor , eu, por outro lado, vivi um romance com um homem hipotético, que acho que nunca existiu, você já leu Lolita?

-“Você pensou que se divertia, sabia como me dominar. Mas era eu que sabia fingir. Era eu que te fazia sonhar”. - dei um de metido e citei o clássico Lolita, que tinha lido pelo menos duas vezes.

-Claro, você leu Lolita -Ela sorriu e continuou a contar aquela história, que para ela parecia ter um significado banal diante da vida que ainda tinha pela frente.

-Casei com Oscar, contei a história antes de casar para meu querido noivo Oscar, disse toda a verdade para ele, falei que talvez ainda amasse Henrique, que não sabia se o amaria igualmente, ele entendeu, disse que o tempo falaria por si – ela tomou um gole de café e continuou – ele estava certo, amei o Oscar muito mais que Henrique, só descobri com o tempo, porém já havia falado demais coisas que nem tinha certeza – ela suspirou - Oscar me amou com essa trava no peito.

Eu fiquei com o olhar perdido, tivemos um segundo de silêncio, acho que a professora queria enterrar essa história.

-Seu pai falou que você não serve para vender móveis, que não tem talento comercial, gosta de ler, que escolheu ser médico, está no segundo ano – ela suspirou e completou – ele está orgulhoso, pena que conheci vocês tão tarde, lindas pausas para o café, boa conversa– escutamos a buzina do carro do meu pai – olha ele ai, não morre tão cedo.

-Por que esse livro? - perguntei.

-Talvez eu fosse a bola que ele tinha que rolar para o alto do morro, ele achava que nunca o amaria como ele me amou.

-Dona Leila acho amor não pode ser medido, não se quantifica o amor – ela me abraçou e eu disse – gostei de conhecer a senhora.

-Também gostei de você…Preciso conhecer o mundo, algumas partes, talvez Paris, quem sabe na volta teremos outra conversa, sobre um assunto bem mais interessante.

Eu ia saindo quando ela me chamou, entregou o livro e a foto.

-Não quer? - perguntei.

-Não, Não José, - ela empurrou o livro de volta pra mim - passei a detestar Camu depois que conversei com seu pai e quero me lembrar do Oscar, use a foto como marcador de texto.

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 03/05/2023
Código do texto: T7779002
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