A brisa da manhã me lembrou.

Essa noite tive um pesadelo,

que me acordou no meio da noite.

Ainda afetado pelo susto,

não identifiquei se o sol já havia nascido.

Me levanto em direção à janela e, ao abri-la,

me deparo com a gélida brisa da manhã, combinada

com a cor indescritível que o nascer do astro rei nos proporciona.

Percebi que eu e o sol, sem combinar, despertamos juntos.

Aquele silêncio,

somado ao característico vento,

produções daquele momento,

falaram muito alto comigo e

me lembraram de quando acordava para ir à escola.

O longo caminho para chegar até lá

era suavizado com a companhia dos amigos, das suas histórias,

das discussões intermináveis e inúteis a respeito

dos mais improváveis e impossíveis temas.

Nas mochilas, além dos materiais,

cada um levava o seu peso individual

dos característicos fardos emocionais e familiares

de crianças das favelas.

A escola, como confirma sua própria etimologia era,

para muitos de nós, um verdadeiro lugar de descanso.

Naquela época não tínhamos celular.

Eu tinha um despertador, pequenino, quadrado,

com sua música mágica avisando-nos que o tempo está passando:

Tic-tac...

Me fez lembrar quando acordava nesse horário

para jogar futebol com os amigos no campo de barro

do condomínio da nossa vila,

o "condô".

O prêmio eram duas "Dolly" de limão, geladas,

coroação dos vencedores.

Corríamos com toda força, disputávamos cada espaço.

A sensação era a de final da copa do mundo.

Na minha cabeça, o "condô",

era como o Maracanã lotado.

Na minha imaginação, posso vê-lo ainda hoje,

sentir o seu cheiro,

o gosto da água fresca das suas fontes.

Tínhamos como platéia o pó da terra vermelha,

a lama, as árvores e os ribeiros.

E claro, os cachorros, que sempre nos acompanhavam.

Sabíamos seus nomes, mas não conhecíamos seus donos.

Estavam em todos os lugares.

Eram verdadeiramente, livres.

Acordávamos no horário, 06:00 horas,

nos encontrávamos todos na rua principal.

E sem qualquer meio digital, o que era combinado,

funcionava perfeitamente bem.

Como um despertador invisível,

o desejo de viver era quem acordava a todos para o encontro,

sagrado encontro.

A despeito da região ser próxima de uma grande represa,

absolutamente ninguém tinha frio.

Quanto ao passar das horas, a impressão que se tem

é a de que quebraram os ponteiros dos relógios,

aceleraram suas voltas.

Quem teve coragem de fazer tamanha crueldade?

As horas voavam e, quando se via,

o sol se preparava, novamente, para o seu repouso,

nos convidando a fazer o mesmo.

Mas o sono não vinha,

desapareceu completamente.

Como querer dormir quando a vida é tão boa?

Hoje, muitas vezes quero somente dormir.

Dormir é a alegria.

E como sempre tenho frio, melhor ainda.

O que mudou entre aquele tempo e esse?

Enquanto passava o dia todo na rua, sem frio, sem comer nada,

hoje, vivo procurando o que comer.

Passo o dia inteiro comendo e,

na maioria das vezes, sem a mínima fome.

Entregue ao cansaço e a gulodice sem causa.

O que mudou entre o nascer do sol daqueles dias,

para o nascer do sol de hoje?

A brisa da manhã me lembrou de um tempo em que morei na eternidade!

Sim! As crianças moram na eternidade, sem qualquer preocupação,

sem passado ou futuro,

vivendo o hoje, o agora e com a máxima intensidade possível.

Por isso choram e batem os pés quando contrariadas são.

A brisa da manhã me lembrou de quando eu me sentia vivo!

Me lembrou de quando o sangue corria nas minhas veias

e não somente se arrastava.

Não tinha falta de nada, a não ser, de viver.

Não conhecia nada a respeito de qualquer gourmetização.

Comia o pãozinho com margarina acompanhado de um copo de café

como se fosse a maior delícia da Terra.

A brisa da manhã me lembrou que, talvez, fomos enganados.

Talvez superestimaram a busca frenética pelos recursos,

talvez seja um equívoco não ter tempo para nada,

talvez, talvez...

Talvez o pedaço de carne que se come à mesa,

junto de quem se ama,

é melhor do que qualquer restaurante estrela Michelin.

Talvez o amor e a compaixão,

ainda que acompanhados de toda sua respectiva e inerente complexidade,

valem a pena.

A brisa da manhã me lembrou que, se eu pudesse,

trocaria esse tempo por aquele.

Mas também me lembrou que o sol continua a retornar no outro dia e,

com ele, a oportunidade de despertar e de voltar a viver,

mais uma vez,

continua à nossa disposição.

Nicollas Madeira
Enviado por Nicollas Madeira em 21/05/2023
Reeditado em 21/05/2023
Código do texto: T7793744
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