À margem da cúpula

Zími queria voltar logo para casa porque iria estrear o forno industrial que ele e Mila Cox compraram de um vizinho. O valor do investimento era medido muito mais pelo espaço que a peça ocuparia na cozinha, do que pelo valor pago.

Ele foi ao mercado comprar ingredientes para pizza.

O amigo e vizinho uruguaio Silvano era perito no preparo delas, e mesmo tendo um forno modesto, sempre as preparava em seu apartamento.

Na fila do caixa, Zími estava pensando em Germano Matias, naquele dia em que sua morte foi noticiada.

Eles chegaram a se conhecer, muitos anos antes, na Praça da República, na fila de uma agência bancária.

O interesse de Zími era o fato de se tratar de um artista que era conhecido, mas era ao mesmo tempo underground. Podia não ser underground em seu gênero musical, mas o era para o público em geral. Esse equilíbrio era interessante para Zími.

E enquanto pensava nisso, alguém atrás dele o chamou pelo nome e sobrenome, e um calafrio maligno lhe percorreu a espinha.

Antes que olhasse para trás, o calafrio chegou a congelar momentaneamente a empatia que sentia por aquela gente sofrida que via sempre que ele estava ali, tamanho era o desprazer de ter sua brisa cortada com tanta deselegância.

Ele seria o próximo a ser atendido na fila do mercado.

A pessoa que o chamou era Norma Arruda, setenta e sete anos.

Era sua professora no colégio de freiras, onde Zími cursou o primário.

Norma foi a mulher que o alfabetizou. Tia Norma. Dava aulas de português, matemática, estudos sociais e ciências.

Era uma nulidade em termos de cultura, e em 1983, de maneira extraordinariamente bizzarra, manifestou-se, em horário de aula, contra o show do Kiss., sob as mais absurdas alegações, baseadas em patéticas lendas sobre a banda.

Isso bastou para que sete garotos e cinco garotas da classe estivessem na escola com uma camiseta do Kiss já no dia seguinte, sabotando o uniforme escolar por semanas.

Zími foi aluno de Norma de 1981 até 1984, quando encerrou o curso primário e partiu para uma instituição mais liberal, para ingressar no então curso ginasial, e escapar da primeira comunhão.

Não escapou, porém, de conviver com Norma durante o ano de 1984, quando ela falava sobre ‘Diretas já’, distorcendo completamente a perspectiva que se poderia ter sobre o futuro do país.

Nos anos seguintes a ditadura nunca deixou de existir, a economia estava arruinada, a inflação era bizarra.

Até o dia do reencontro de Zími e Norma, as perspectivas sobre o futuro ainda eram sombrias.

Até a última vez que Zími tinha visto aquela mulher, ele via ali, por parte de alguém que de fato poderia ser chamado de influenciador, uma ingenuidade burra para uma mulher que havia nascido em 1946 e se tornado professora.

Mas naquele período, apesar de ser uma criança, Zími já sabia muito sobre o que gostava e sobre o que repudiava.

Na música isso já era latente, pois cresceu abençoado pela existência de sua prima Jamile, que era onze anos mais velha e estava muito à frente do tempo em que o resto da família vivia, e séculos a frente dos professores que tinha.

Jamile tinha um pai com mais dinheiro que o pai de Zími, então viajava pro exterior todo ano e voltava com discos que deram as diretrizes para o que seu primo se tornaria anos depois.

Eram primos próximos, pois Jamile costumava visitar um Zími ainda criança, sabendo da necessidade de fornecer informação cultural para alguém que cresceria e falaria, alguém de sua família, com quem supostamente haveria convivência futura.

O teor das conversas familiares precisariam ser toleráveis para ela no futuro, então seu tempo com o primo era um investimento. A mãe de Zími agradecia, pois ele dava muito menos trabalho com a presença da prima.

O outro interesse dela nisso era o fato que os jovens que moravam no prédio de Zími naquele tempo fumavam uma maconha séria, e naquela época, nem se sonhava com a existência de câmeras espalhadas pelo condomínio. Havia para ela, portanto, um convívio extrafamiliar ali, com gente um pouco mais velha.

Para tudo que a prima de Zími representava em sua vida, havia também, naquele período de 81 a 84,, Tia Norma para representar o oposto.

Quando ele se queixava de alguma chateação na escola, Jamile explicava que naquele ambiente escolar, a linguagem era conformidade, que era a linguagem da sociedade.

E no ambiente em que ele podia desenhar aleatoriamente e ouvir Astral Weeks, Tapestry e Pet Sounds, a linguagem é a liberdade, propícia para indivíduos criativos, fora do rebanho e um pouco mais livres da pesada premissa do sistema educacional primitivo de um país pobre, isolado por uma ditadura militar, e que treinava as pessoas para acreditarem, e não para saberem de fato.

Mas não havia escapatória para isso. Era melhor ter paciência até conseguir o diploma e se livrar de uma dívida com a sociedade. Apresente a eles o diploma depois, caso precise de um emprego deteriorante e penoso na execução e no convívio com os colegas.

Era Jamile que dizia isso a Zími, e quando ele se formou em Jornalismo, lembrou-se dela, que a essa altura morava em Blackpool.

E agora, trinta e nove anos depois do fim do curso primário, ali estava uma pessoa que foi decisiva por alfabetizá-lo, mas que ao mesmo tempo representava uma ditadura que nunca acabou. As patrulhas sempre foram feitas deliberadamente até por quem dizia ser defensor da liberdade.

Norma era uma mulher com princípios machistas, e lembrava dos nomes e sobrenomes dos colegas de Zími na primeira série, em 1981, além do destino tomado por cada um.

Ali estava acima de tudo a lembrança de como pessoas completamente diferentes eram amontoadas para atividades coletivas, com o bullying, o racismo e o fascismo fazendo parte do contexto.

Ela continuava citando nomes com seus sobrenomes, que foram lembrados por Zími naquele momento, mas nunca eram revisitados premeditadamente por ele em sua memória, e haviam caído no limbo do esquecimento.

Norma lembrava os nomes e contava mais histórias sobre eles, e Zími soube que muita gente não escapou de tudo que ele sempre fugiu, principalmente acomodação e inércia numa vida sem arte.

Nomes das crianças de outrora, agora pais e mães de famílias que deterioraram ou estavam com esse processo em curso, gente envelhecida precocemente.

Pensões, o conserto do carro, prestações que pareciam inofensivas e que agora viraram um lodo que contaminou todos os setores da vida. Nunca havia música ou outra atividade artística envolvida nas histórias contadas por Norma.

Zími morava a duas estações de metrô da escola onde estudou com Norma, e eventualmente reconhecia na rua um ou outro ex-colega do período quando eles moravam nas redondezas.

Nunca havia reencontrado nenhum professor daquele tempo, nem ninguém que lhe contasse sobre o destino daquelas pessoas.

Eram uma massa cheia de confiança, arrogância, sonhos, pretensões e expectativas, mas despontando para o lado ruim do anonimato. Acontece quando por algum motivo, a pessoa não se conforma com ele e o atribui a algum fracasso.

O lado bom pode ser atribuído a artistas como Germano Matias ou Stephen Malkmus, que são reconhecidos por suas obras, mas podem andar na rua sem serem importunados.

Zími teria tomado conhecimento caso algum deles transpusesse a linha da mediocridade na vida adulta.

As histórias que Norma relatou sobre pessoas pescadas das profundezas da memória Zími eram de vidas tão deprimentes, que deram a ele uma estranha sensação de missão cumprida, e uma inédita dimensão sobre o quanto havia sido salvo por sua prima Jamile.

Ao abrir o aplicativo do banco para pagar a compra, leu uma mensagem de Mila Cox dizendo que o forno funcionava de forma magnífica, e o acelerou para que voltasse logo para fazerem as pizzas.

Foi quando Norma perguntou sobre o Zími fez de sua vida durante todo aquele tempo.

Ele resumiu o quanto pode, até que chegasse ao período atual, do apartamento em que mora atualmente, sobre ser baterista e vocalista do duo Crop Circles, e explicando que a garota que havia mandado mensagem não era sua filha, e sim sua parceira musical, que tocava baixo, teclado e sintetizador, além de cantar sessenta e cinco por cento das músicas.

De maneira inversamente proporcional, a garota do caixa se interessava cada vez mais pela história, enquanto os valores cristãos e a mente estreita de Norma a impediam até mesmo de entender sobre o que ele falava.

A garota do caixa lhe deu a nota fiscal, e Zími fez anotações ali com uma caneta que tirou da mochila, e devolveu o papel a ela.

Zími se despediu das duas como se tivessem em sua vida a mesma importância, e saiu sem olhar para trás.

Usava uma camiseta dos Bad Brains, havia colocado tudo o que comprou na mochila, e ao sair andando, tinha as mãos livres.

Ele e seus amigos tinham fome de pizza.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 23/05/2023
Código do texto: T7795721
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