"PAPAI EU-TI-AMO"

 

 

Chovia.  Ruas alagadas. Trânsito emperrado, ou empurrado a remo.  Mais uma vez, chegaria a casa atrasado.  Culpou o governo por toda aquela bagunça.  Não merecia tanto castigo depois de um dia infernal de trabalho.  Quanta coisa ainda ficou por resolver!...  Quantos E-mails ainda teria que responder!...  Como se não bastasse, aquele chefe gaúcho, novato, que não entende nada de Nordeste, obrigando-o a usar paletó durante todo o expediente!...  Isto, sem falar no tamanho das exigências que ele faz, agarrado o dia todo a uma cuia de chimarrão.  Cada minuto que passa parece uma hora!...  "Arre!...  Sinal vermelho novamente e o carro não andou um metro!"...  Até que, de metro em metro, conseguiu adentrar na garagem do edifício onde mora. Dirigiu-se ao elevador e quase rasga o aviso:  "Elevador Quebrado".  Pô!!... Mais essa!!... Largou um palavrão contra o síndico, que, por certo, não estava ali por perto.  Resignado, topou subir os dez lances de escadaria.  Ufa!  Quinto andar.  Até que enfim!!...  Abriu rapidamente a porta da casa, atirou o sapato num canto de parede, a bolsa, paletó, gravata no sofá e, como se morasse sozinho, passou direto para o banheiro.  Incontinência urinária (?).  Aproveitou para uma ducha de água morna.  O banho aliviou um pouco - só um pouco - o seu estresse.  Vestiu uma roupa leve, que a mulher deixara previamente pendurada no cabide do banheiro. Em vez de agradecer, teve vontade de dizer: "Não faz mais do que sua obrigação!".  Enxugou o cabelo e, agitado pela fome, sentou-se à mesa.

- "O que fez hoje para o jantar?" - perguntou, mostrando o mesmo humor de uma fera faminta.

- "Espera um pouco Sua mãe ligou, reclamando que está sozinha e faz muito tempo que não a visitamos"...- respondeu a mulher, que emendou:  "Sua irmã também ligou, queixando-se de que você não responde às mensagens que ela envia pelo aplicativo"...- e continuou: - "Você, quando chegou, atravessou a sala e não deu um "oi" sequer para Luizito e Marina - que estão ali brincando no tapete -, nem mesmo pra mim!".

Aí, Marina, de quatro anos de idade, se aproxima da mesa e entrega ao pai um papel dobrado em forma de envelope.  Faz um sorriso não correspondido.  A ele, naquele instante, só interessava o jantar, que não chegava.  Apenas dobrou o papel desenhado pela filhinha, pôs no bolso, e continuou inquirindo a mulher - a essa altura do campeonato, bastante irritado e já elevando a voz. 

A inocente Marina voltou à sala sem conter as lágrimas, condoída pela pouca ou nenhuma atenção prestada pelo pai.  Ele, alheio às coisas mais importantes da vida, por certo cego de indignação, levantou-se da mesa bruscamente e rumou para o quarto de dormir.  Deveras faminto, estava na verdade cansado e, pra piorar as coisas, sentindo-se inferiorizado pela companheira. 

Deitou-se.  O papel no bolso do pijama também o incomodava.  Pegou-o, amassou-o como coisa sem utilidade e o atirou no chão, bem ao pé do guarda-roupa.  Passava das nove da noite.  Tentou dormir.  Toscanejou apenas.

Levantou-se perto da meia-noite.  Precisava comer alguma coisa.  Foi à sala de jantar e viu que a mesa estava posta.  Engoliu o que pôde e voltou para a cama.  De passagem, viu que a mulher dormia no quarto das crianças, abraçada às duas. 

Alimentado - quiçá um pouco menos tenso -, resolveu apanhar o papel machucado que atirara ao chão em forma de bolinha e - entre desenhos do Sol, nuvens, árvores, praia e alguns animais - leu a mensagem de sua querida filhinha:

"PAPAI EU-TI-AMO".

Sentiu-se igual à lama das ruas alagadas, mais sujo e mais culpado do que estressado. Derreteu-se em lágrimas e foi dormir, abraçado aos três, na caminha estreita das crianças. 

Arrependido de tudo - e choramingando aos pés da filhinha -, parecia um pai.

Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 04/06/2023
Reeditado em 12/06/2023
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