JARDIM DE HORTÊNSIA

De manhã, os lábios ressecados pela febre e a dor de cabeça que estouravam meu cérebro, mesmo assim, andava pelo jardim conversando com elas. Depois da conversa, molhava-as com o regador. Era louca por elas, achava-as deslumbrantes nas suas variadas cores, especialmente, as azuis. Azul era minha cor preferida. Vivia sonhando em ter um vestido no mesmo tom do azul das Hortênsias. A febre e a dor de cabeça era por causa da chuva que tinha tomado no dia anterior, quando voltava da roça.

A manhã estava clara e o sol despontava no horizonte com sua face risonha de dono do dia.

Assim que finalizei a primeira ordem, fui preparar o café com batatas crispadas na panela de ferro. Amava degustar meu café com elas mergulhadas no requeijão que eu mesma derretia na frigideira. Aliás, fazia quase todas as coisas que tinham na chácara, desde minha infância. Fui aprendendo na base dos gritos sobre as coisas da roça.

Era filha única de pais que me geraram no coração. E que corações! Eles me diziam que eu era filha do coração, mas, nesses corações, ao meu entendimento nunca estive. Falavam que ouviram meu choro na madrugada e que Toquinho latia num desespero só, para que eles acordassem.

Toquinho era o cãozinho de estimação que meu pai do coração tinha. Por causa dos latidos desesperados, eles levantaram para ver o que era e me encontraram ao pé da escada envolta numa coberta fedorenta e com uma touca de lã encardida que cobria minha cabeça.

Levaram-me para dentro a contra gosto, minha mãe não queria, porém, o cachorro mostrou-se tão feliz com a minha chegada que eles resolveram ficar comigo.

A mãe que me criou contava que parecia que eu nem tinha tomado banho depois que vim ao mundo, então, enquanto um deles me averiguava o outro punha a chaleira com água no fogo. Embora fosse madrugada, precisavam me lavar pois, eu estava fedorenta.

Colocaram a água numa bacia grande e fizeram a lavação com sabão feito em casa, à base de pinhão, miúdos de porco e soda cáustica. Na verdade, a sujeira de dias seria eliminada, porém o cheiro continuava desagradável.

Enrolaram-me noutro cobertor e logo dormi. Quem me deixou na escada deu-me de mamar, pois, minha barriga estava cheia.

No outro dia, logo cedo, o guardador do rebanho correu à cidade para comprar coisas para mim. Mamadeira, fraldas, roupas para vestir, sabonetes, cremes contra assaduras e cobertores pequenos.

Voltou logo, porque minha mãe exigiu urgência. Eu ainda dormia, mas, tão logo acordasse, começaria o choro.

Aquela era uma casa onde só se ouvia o latido de Toquinho. Esse, depois que cheguei ficou todo faceiro e não saia de perto da rede onde me puseram. Agora, éramos dois barulhentos para o casal perder a paz.

Acordei e em poucos minutos, trouxeram leite de cabra na mamadeira nova, que degustei avidamente.

Apesar de todos os intemperes da minha vida, era um bebê saudável. E quase nunca reclamava da falta de afeto. Segundo as memórias contadas, fui bem cuidada, ainda que não merecesse, por ser uma negrinha feia, de olhos grandes e nariz largo. Por causa da minha cor, raramente me punham no colo. Toquinho passou a me amar, mais do que aos seus donos que tanto gloriava, antes de mim.

Assim fui vencendo cada dia, daquela vidinha de pouco sentido.

Quando alguma visita chegava, eu permanecia no quarto e meu cuidador também. Esse me fazia companhia dia e noite, sem contar que me defendia de unhas e dentes. Quando eu chorava por alguma coisa, que nenhum dos dois ousasse me recriminar que Toquinho pulava na frente com toda valentia para me defender.

Certo dia, a esposa e as crianças do caseiro que cuidava das ovelhas e das cabras foram me visitar. Eu confinada no quarto junto com o cão.

As duas conversavam na cozinha sobre meu aparecimento, sobre minha cor e sobre a mudança repentina que a vida deles tiveram.

Celeste pediu para me ver e mamãe levou-a, ao quarto. As crianças também foram. Eu, toda embrulhada nas cobertas estava na velha rede e Toquinho de vigia. As duas me olharam e Celeste, talvez, tivesse tido um pouco de afeto por mim, quis me por no colo, mas, mamãe não deixou. Argumentou com ela, que já tinha gastado muito dinheiro comigo e queria que o tempo fosse rápido para eu dar menos trabalho a ela e começar a compensar as despesas que estava dando.

O tempo correu, assim como ela desejava e me vi aos cinco anos de idade, lavando a louça, varrendo a casa e buscando a chaleira de leite no curral.

Minhas roupas eram feitas dos restos que sobravam das roupas dela e das de meu pai que ela mesma costurava.

Depois dos cinco anos lembro-me de tudo, principalmente, dos vestidos de várias cores, em conformidade com o tamanho da sobra dos tecidos. Não tinha nenhum calçado e também não me levavam a lugar nenhum. Sempre que saiam para irem à cidade, me deixavam com Toquinho. Na minha santa inocência, nem dava ligança. Tratava de executar as tarefas recomendadas por eles e depois ia brincar com o cachorro. Ele realmente cuidava bem da minha segurança. Era um vira lata valente e cheio de amor para dar.

Certo dia, enquanto eles foram à cidade, saímos os dois pela estrada da roça, comendo as vagens de íngá que estavam mais baixas e eu conseguia pegar.

Já estava com nove anos de idade. Bastante crescida, quase do tamanho da minha mãe. Em pouco tempo ficaria mais alta que os dois, já que papai também era baixinho.

Benedito, o caseiro, ganhou uma cadela e essa entrou no cio. Encontramos com ela no caminho da roça e os dois se atracaram. Fiquei muito assustada, pois não sabia o que era aquela presepada. Ambos se grudaram e eu comecei a chorar, pensando que eles iam morrer. Desesperada sentei à beira do caminho e fiquei em silêncio. Quando percebi eles já se soltaram e corremos os três para casa.

Nesse dia, briguei muito com meu vira lata, mas, ele nem se incomodou, de tão apaixonado pela cadela do caseiro.

Entramos em casa e fomos para o quarto. Peguei uma toalha e fui tomar banho e também dei um banho nele.

Ele estava desesperado de desejo pela cadela mais uma vez, todavia, não deixei que ele saísse, Benedito levou a cadela para casa. Ainda que o namoro tenha sido apenas uma vez, ela ficou prenha e em dois meses deu a luz a cinco cachorrinhos. Um deles era Toquinho, "cuspido e escarrado."

Quando meus pais postiços chegaram, eu já estava dormindo na tal rede e o cãozinho embaixo dela me vigiando. Fingi que não vi, continuei de olhos fechados ouvindo as piores ofensas sobre minha pessoa.

A primeira delas era que eu estava muito crescida pela minha idade e que em breve viraria moça e tinham receio de que me transformasse em rebelde por não estar frequentando a escola, como os filhos da Celeste e também pelo fato de até então, não terem feito minha certidão de nascimento.

Deram-me o nome de Hortênsia, só o nome, não tinha nome de família e muito menos sabia sobre as letras.

Já havia passado da hora certa escolar.

Esse mesmo assunto foi abordado no outro dia cedo, quando Benedito voltou do curral. Penso que ele aproveitou a deixa para argumentar com meu pai, sobre meus direitos, entre outras coisas, que ele deveria responder na justiça, pelo tratamento que me davam.

Em face disso, meu pai resolveu junto com minha mãe que iríamos à cidade no outro dia, para tentar resolver esse assunto e se ficasse difícil, me deixariam num orfanato.

Para mim, falavam em grego, não sabia do que se tratava.

No outro dia, saímos cedo e tivemos que levar Toquinho, porque ele fez o maior escândalo e saiu correndo atrás do fusca.

Comecei a chorar e os dois com medo de que o animal se perdesse, pararam e eu o peguei no colo.

Benedito e Celeste também foram para servirem de testemunhas sobre o meu repentino aparecimento.

Pois bem, conseguiram minha adoção e me matricularam na escola.

Rapidamente eu aprendi o alfabeto e juntar as letras formando as palavras. Corria contra o tempo, é claro que era uma ciência sem consciência, pois na verdade, não sabia de coisa nenhuma, entretanto, no fim desse mesmo ano consegui passar na prova e fechar as lacunas de acordo com o ano e a idade que eu tinha. Ah, esqueci de dizer que Toquinho ia comigo à escola todos os dias, não adiantava prendê-lo, pois ele gritava tanto, pulava a janela e saia em disparada para estar junto de mim!

Estava com treze anos, quando mamãe, do nada ficou doente e foi levada ao hospital e de lá ao cemitério.

Eu já havia menstruado quando ela partiu, mas, a sua falta de atenção para comigo, nem tinha feito com que ela percebesse e eu nada falei.

Depois que ela partiu, meu pai começou a assediar-me aos pouquinhos. Volta e meia, acordava com ele alisando minhas pernas. Imediatamente eu o repelia, não com palavras, mas, com o olhar e ele começava a me maltratar e era ai que Toquinho se enfurecia com ele, ao ponto de em certa ocasião, avançar na cara dele e quase lhe arrancar o nariz. Foi necessário ir ao posto de saúde para suturar em alguns pontos. Coisa que ele omitiu quando lhe perguntaram sobre o acidente doméstico.

Quando Benedito viu o nariz dele naquela situação indagou sobre o ocorrido e ele mentiu, mas, eu ouvi e, imediatamente falei o que tinha acontecido.

Lembro que Benedito lhe falou algumas coisas, sobre o respeito que ele deveria ter por mim e que ele poderia se dar muito mal com a justiça se fosse denunciado.

Prestei muita atenção ao que escutei e depois desse dia tratei de passar a chave na porta quando estava no quarto.

Com raiva do cão, ele o chutava, sempre que podia, até que foi mordido de novo e irado buscou a arma para mata-lo. Peguei-o e nos trancamos no quarto.

No outro dia, quando fui à escola, contei à professora e lhe pedi ajuda. Estava com muito medo.

Quando cheguei em casa, a polícia estava lá, havia ido busca-lo. Levaram-no. Ele me olhou com tanto ódio, que me senti mal.

Pegou três anos de prisão e então, ficamos somente, o cachorro e eu.

Uma vez que havia recebido um nome de família, frequentava a escola, achei por bem cuidar da chácara como ela sempre foi cuidada, claro que, com a ajuda de Benedito, de Celeste e dos filhos que também estavam crescidos.

No auge dos meus quatorze anos, já tinha quase um metro e oitenta.

A lida nas atividades da chácara e os estudos absorviam todo meu tempo. Conseguia ir dormir somente depois da meia noite.

A produção havia crescido bastante depois que comecei o curso secundário profissionalizante.

Aprendi a dirigir sozinha. Após a prisão daquele que fazia o papel de meu pai, minha responsabilidade aumentou.

Um dia fui à cidade comprar provimentos e alguns defensivos agrícolas. Nessa ida fui abordada por uma senhora de pouca idade e muito bem vestida que me levou para tirar algumas fotografias, prometendo que em breve me daria uma resposta muito surpreendente.

Voltei para casa e fui tratar do meu trabalho e dos estudos e mal pensava sobre as fotografias tiradas.

Depois de quinze dias, ela me telefonou dizendo que eu seria contratada por uma empresa internacional como modelo.

Nesse dia chorei muito. Não sabia o que fazer. Toquinho estava muito velho, quase não enxergava e essa era uma oportunidade que eu não podia perder, então resolvi que o cachorro ia comigo para onde eu fosse, enquanto estivesse vivo.

Fui conversar com Celeste e Benedito e eles me aconselharam a ir em frente, era uma oportunidade que na minha situação, não deveria perder.

Sobre a administração da chácara, eles continuariam cuidando e me dando suporte necessário, caso eu precisasse.

Durante a preparação para a viagem, perdi Toquinho. Amanheceu morto embaixo da minha rede. Para mim, foi a maior dor que eu senti na vida. Doeu muito mais do que ser assediada pelo meu pai e do que vê-lo sair algemado.

Embora desconsolada, viajei depois de dois dias da morte do meu cão e confesso, que minha vida deu um salto tão grandioso que não precisei do suporte prometido e passei a viver do meu trabalho, indo morar em Nova Iorque.

Sobre meu pai, saiu da prisão depois de um ano e nem se deu ao trabalho de voltar às suas origens, casou-se com uma mulher cheia de posses e ficou morando na cidade. A chácara tornou-se um bem definitivamente, de direito, da família de Benedito.

Eu, a negra feia de olhos grandes e nariz largo continuo em Nova Iorque, muito bem, obrigada!

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 04/06/2023
Reeditado em 12/06/2023
Código do texto: T7805501
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