Split

Num domingo pela manhã, Mila Cox, Zími e Silvano estavam voltando do show da banda Major Flops, que tocaram pela primeira vez em São Paulo na noite anterior.

Fariam mais um show na capital com os Crop Circles , banda de Cox e Zími, e com o show de Silvano para abrir os trabalhos, numa festa junina na sexta-feira seguinte, e no sábado, Silvano e as duas bandas tocariam de novo num bar em Taubaté.

Esses dois próximos shows marcariam o lançamento de um split que as duas bandas lançariam, e que já estava gravado.

Os Major Flops eram uma banda quase monotemática, com influência de punk e new wave, que procura advertir o público em relação à 'segurança' oferecida pelo sistema, com registros e salários que mantém a cidadania refém, porém agradecida pela oportunidade.

Tocaram num bar pequeno no Belenzinho, mas o público foi satisfatório. Dentro e fora do bar havia muito mais gente do que caberia numa sala de aula que os universitários dessa banda frequentavam.

Voltando para o centro da cidade na Kombi de Silvano, depois de deixarem os Major Flops na casa da avó do baterista, onde estavam hospedados, os três passaram pela Avenida República do Líbano, contornando o Ibirapuera. e pararam num semáforo na Avenida Pedro Alvares Cabral.

Toda vez que passavam ali, piadas de baixíssima categoria brotavam automaticamente. em referência ao monumento instalado ali havia décadas, por razões que para eles eram bem suspeitas.

Dessa vez não fizeram piada, e ocorreu a eles que uma foto do "deixa que eu empurro', o monumento que é uma ode à escravidão, deveria estar no encarte de algum lançamento vindouro em disco dos Crop Circles.

Zími falou: "A razão pela qual aquilo ainda está ali, aparecendo em fotos da cidade e visto por milhares de pessoas diariamente podia ser oficialmente esclarecida. Mas ao invés disso, essa merda continua aí, parecendo oficializar a escravidão assalariada que o vê e não se importa, muitas vezes por não saber nem mesmo do que se trata. Sai uma gestão, entra outra e essa porra está aí até hoje. Um ônibus que passa lotado de gente sofrida nessa avenida às sete da noite nos dias de semana tem ali gente suficiente para remover esse lixo. Fico chocado pelo fato das autoridades não se preocuparem nem mesmo em remover o simbolismo dessa escravidão que eles promovem. O problema é que os escravos retratados no monumento certamente queriam ser libertados, e os escravos assalariados de hoje, na maioria das vezes nem sabe que são escravos, sendo que muitos até mesmo defendem com suas vidas esse regime."

Mila Cox: "São vítimas e algozes ao mesmo tempo. São a maioria, mas ainda existe gente suficiente para mobilizar algum tipo de mudança."

Silvano: "Infelizmente, eu acho que seria necessário mais alguma desgraça global inesperada para acordar quem sabe minimamente o que acontece e não se mobiliza. O que os impede é o medo dos superiores hierárquicos, que os tratam como gado, e se pudessem tirariam ainda mais dessa gente."

Zími: "Se hoje eu não sou nada do que meus pais sonhavam que eu me tornasse, pelo menos poderia morrer agora sem ter me juntado à maioria. Quem se vê junto da maioria, na maior parte das vezes deveria se questionar sobre isso. Esse argumento nunca serviu de nada no trato com eles. Possivelmente porque eles pensem que é tarde demais para se rebelar contra algo que defenderam a vida toda e do qual se orgulham. Qual a glória de um sujeito aposentado por uma corporação milionária que cospe os funcionários velhos, deixando-os com uma aposentadoria patética, sem nem mesmo ter um passado interessante para contar enquanto bebem com seus contemporâneos, também sugados por décadas de jornadas de trabalho excessiva, salários ruins e péssima qualidade de vida?"

Mila Cox: "A gente pode fazer mais uma música sobre esse tema, tomando cuidado para não parecermos panfletários. O povo está tão acostumado a sofrer que parece pensar que o pior ainda está por vir, e nesse ponto, tem certa razão."

Por fim, não desceram da Kombi para tirarem foto, mas a ideia já estava anotada.

Foram comer na padaria que frequentavam na Liberdade, próxima do prédio em que moravam.

No caminho ouviam o álbum 'I'am The Cosmos', de Chris Bell.

Apesar das músicas serem tristes e cheias de dor, e também da morte trágica do artista, a beleza do disco e a forma como foi historicamente ignorado pelo grande público era o que mais os intrigava, e os fazia querer ir mais fundo como artistas e fortalecer ainda mais o comprometimento com a arte, algo que para eles é um diferencial muito maior do que o gênero musical ou a temática das músicas.

Silvano queria até incluir alguma dessas músicas em seu repertório ao vivo, já que havia gravado um disco de dez músicas na internet, e esse repertório é de apenas meia hora, pouco para um show inteiro.

Ele ressaltava que não era preciso temer a falta de uma grande popularidade, pois, segundo ele, a ânsia de estourar para o grande público destrói a razão seminal pela qual entraram na música.

Fazer concessões ao status quo era mesmo algo que nunca havia passado pelo pensamento de qualquer um deles.

O politicamente correto é um disfarce para o intelectualmente estúpido, e a grande popularidade num trabalho sem qualidade é bem pior e muito mais constrangedor do que sumir na obscuridade.

Eles ontinuariam compondo, gravando e fazendo shows, sempre de maneira independente, a menos que algo fora da lógica eventualmente aconteça.

Silvano gostava de lembrar que não estavam mais no tempo em que grandes gravadoras, na ânsia por um novo estouro comercial, assinasse contrato com uma banda como os Melvins, por exemplo.

Eles não entendiam como as pessoas não se ligavam que Greta Van Fleet e Maneskin eram armações das mais grotescas, embustes que uma sensibilidade artística mediana seria capaz de desmascarar, e eles não conseguiriam compactuar com algo desse tipo por nenhum dinheiro.

Embora houvesse entre eles a vontade de crescer artisticamente, havia também o consenso sobre o fato de estarem fazendo o que deveria ser feito, e que nenhum executivo daria pitaco na parte da criação, ainda que o trabalho apresentado não fosse comercialmente viável.

Eles tinham trabalhos paralelos à música, para pagarem as contas, e isso os abstraía de devaneios sobre uma escalada para o sucesso, e isso também dava a eles muito mais assunto para tratarem nas músicas.

Guardaram a Kombi no prédio e foram a pé para a padaria.

O café da manhã era muito pão com manteiga na chapa, cerveja e caipirinha.

Eles falaram sobre a perspectiva dos dois shows que fariam com os Major Flops, e foi inevitável mencionar o comportamento juvenil daqueles garotos.

Havia um tipo de deslumbramento por parte deles, embora nas músicas abordassem temas sérios.

O guitarrista Lipe estava bêbado, talvez como nunca antes, e num determinado momento, enquanto foram para uma esquina fumar maconha depois do show, confessou quase chorando a Zími que estava apaixonado por Mila Cox. Ele era a cara do Lloyd Cole.

Zími não contou isso a Cox, achou inoportuno. Mas ali estava uma carta na manga para uma zoeira futura.

Ele falou: "Quando você é jovem, tudo faz sentido, porque você é burro. Mas eles são uma banda legal."

Mila Cox respondeu: "Eu tenho a idade deles. Você me acha burra?

Zími: "Não, você é um ET, por isso consegue aguentar dois caras de meia idade que bebem muito em shows e que sempre mencionam um plano conspiratório imaginário quando alguma coisa dá errado."

Então a filha do gerente da padaria veio à mesa deles e pediu que Cox autografasse um vinil de sete polegadas que eles haviam dado ao pai dela semanas antes.

Zími falou: "Não deixe o sucesso subir à cabeça."

Silvano arrotou.

Mila Cox disse: "Se eu fizer ainda mais sucesso, saio em carreira solo e mando você pro asilo dos artistas."

Saíram e foram para casa dormir.

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Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 06/06/2023
Código do texto: T7807463
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