Puca

A alegria de prover comida à filha faminta suplantava o estranho sentimento, talvez de remorso, talvez de raiva de tudo.

A criança sorria ao devorar a carne. E era isso , apenas isso que importava.

A única realidade, sem passado nem futuro, era aquele sorriso e aquela carne. Alimento pesado demais para o pequeno estômago vazio de tantos dias. Já não queria contar. Faltavam dedos.

Carne assada, temperada com a fome. Olhou para a brasa entre os tijolos e se lembrou dos três palitos de fósforo. Eram os últimos da caixa. Novo remorso. Diferente, mas remorso.

Mas nada disso importava. Só a alegria da filha.

O chorinho de fome, fininho, sem força, é o pior barulho do mundo. Chorava até dormindo. Às vezes, sorria. Era, tinha certeza, sonho de comida.

A água enganava o estômago. O sono também. A criança dormia numa quase morte para tapear a barriga. As longas horas de sono permitiram o silencioso crime. “Nem crime é” - pensava a mulher em autoabsolvição.

A menina olhou para a mãe. Parou de comer e ofereceu um pedaço. Mas a mulher já havia comido a parte dela. Também guardou um pouco para mais tarde. O problema é que os três palitos se foram.

- Ah, mamãe, a Puca vai querer comer também. Pss, pss, pss.

A mulher secou as lágrimas. E se levantou. Remorso. Gastou os três palitos. Os últimos.

- Pss, pss, pss. Mamãe, a Puca não responde. Pss, pss, pss.

Mas nada disso importava. Só a alegria da filha.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 08/06/2023
Reeditado em 09/06/2023
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