GATOS À PARTE

Dona Áurea era inegavelmente uma mulher forte. Senhora de seus sessenta e poucos anos, já criara seis filhos – e bem criados, hein? Ninguém dissesse ao contrário! – agora adultos. A vida não era fácil, cheia de trabalhos e canseiras – que ela jamais admitia, a não ser que estivesse irritada, o que não era incomum – mas, mesmo assim, vinha-lhe, secretamente, um gosto danado de ver aquela turma bem encaminhada na vida.

Um belo dia tendo deixado na panela um bom bife para o marido – pessoa tranqüilíssima, seu oposto total – apareceu um tal de um gato que já registrara outras “ocorrências” e, atrevidamente, roubou a carne, praticamente nas barbas de dona Áurea.

Foi a gota d’água!

- Atrevido! Gato filho da peste! – bradava, nervosa – Nojento! Roubou a carne que deixei para João!

- Deixe pra lá, minha filha. Eu como outra coisa – disse o marido sem levantar os olhos do jornal – Tem tanta comida ai! Faz outra coisa.

- Não senhor! Isso é um absurdo! Este gato já está virando freguês! – dizia ela acometida por uma ofensa pessoal – Eu vou acabar com esse miserável, custe o que custar!

- Ai, ai, ai! – suspirou João.

Sim, por que ele sabia que quando a mulher se empenhava numa “cruzada” era pior que qualquer cavaleiro templário e três vezes mais obsessiva.

Daí por diante foi guerra sem quartel, dona Áurea quando se empenhava numa coisa era para sempre – ou pelo menos até conseguir o que queria – por isso, o gato, pensava João estava perdido. Mesmo que conseguisse escapar de algum tiro - já que João, homem avesso à violência deixara mofar as balas do revolver que só dona Áurea ainda valorizava como defesa - por qualquer outra coisa, estria perdido.

Estava mesmo! Um belo dia foi capturado, colocado em um saco e levado para um “passeio” sem volta.

- Fecha bem o saco que é pro infeliz não ver o caminho de volta! – recomendou à filha, encarregada de dar sumiço ao “inimigo”.

Mas, ora! Os gatos têm fama de possuir sete vidas, o que não é verdade, entretanto, sabe-se, de ciência certa, que os gatos possuem mesmo é esperteza e um grande semancol – não deu, se manda! – o que os fazem campeões de sobrevivência. No caso específico, o dito cujo felino viu logo que não tinha a menor chance contra dona Áurea, e por melhores que fossem os bocados de suas impolutas panelas não valia, de modo algum, seu precioso courinho. Achou imediatamente os fundos de uma peixaria e instalou-se.

Porém para Áurea a cruzada ainda não terminara – mesmo sem gato – ela tinha que tomar providências contra outros ladrõezinhos reles, da mesma espécie daquele infeliz saído de algum buraco dos infernos, aquela peste!

Ficava de orelhas em pé cada vez que ouvia uma suspeita de miado, por mais longínquo que fosse.

Os filhos de dona Áurea divertiam-se à grande, com a nova mania – tinha várias – da mãe:

- E ai, mamãe – perguntava o mais velho – Cadê o gato?

- Não me fale no gato! Nem me fale em gato!

- Ê, Dona Áurea a senhora já foi melhor na caçada- ironizava – o gato tá por ai, tirando onda com a senhora. Digo mais, está desafiando!

- Ora, dane-se você e aquela peste! – dizia ela dando uma meia volta raivosa – Vá aperrear o juízo de outro. Eu mandei botar o gato fora, ele não vai voltar.

- Mas, e esses miados que a gente ouve por aqui, dona Áurea? Vai dizer que não ouviu?

- Saia daqui, seu peste! Eu acabei com o gato, já disse!

Os filhos divertiam-se com os destemperos da mãe, mas o fato é que o gato havia sumido.

Uma noite, as coisas estavam paradas, dona Áurea, apesar de alerta estava tranqüila, já que o miserável felino nunca mais havia dado o ar de sua graça.

Foi então que uma das moças – especialista em duas matérias: imitar felinos e provocar a ira fácil de dona Áurea – teve a brilhante idéia de ir arranhar a janela do quarto da mãe e miar ironicamente, tanto quanto poderia ser irônico o miado de um gato imbuído em irritar dona Áurea. Comunicou ao pai, o protetor das reinações e defensor dos seus amados diabinhos .

A reação foi imediata. Áurea, a esta altura cochilando, já em sua cama, levantou-se de um pulo. João que fingia um cochilo, fez-se de muito assustado:.

- O que foi, mulher! – disse João, dando um pulo da cama.

- O gato! – gritou em alto e bom som, que reverberou em todas as paredes da casa – O miserável voltou!

- Que gato? – perguntou, contendo o riso.

- O gato! O gato! – repetia Áurea possessa – O gato voltou, João!

- Mas, que gato, minha filha? Você já não mandou dar um fim no gato?

- Mas, ele voltou! Pra me irritar, para me desfeitear! Olha o gato miando ai João!

E armando-se de uma bomba de fleet (mata mosquitos de sua preferência) e do revólver de João, de camisola e chinelos, com os cabelos revoltos, voou para fora de casa, atrás da peste do gato que agora morria – envenenado ou baleado, não importava – e desta vez para sempre!

Correu para o quintal, onde a filha se escondia.

A danada viu que a Excelente brincadeira era, porém, perigosa. Quase morreu de susto ao ver a mãe de revólver em punho. Dona Áurea tinha excelente pontaria e pouquíssimo juízo, com raiva do gato atiraria em qualquer coisa que se movesse.

- Mas, por que peste ela está com essa bomba de fleet? – pensou a moça, intrigada apesar do medo.

E procurou safar-se da melhor maneira, arrastando-se por trás de uma cerca, e indo sentar-se – coração aos pulos - na cozinha onde João tomava água e esperava a délivrance da tragédia. Áurea entrou na cozinha bufando – revolver numa mão, bomba de fleet na outra - e encontrou João e a filha em meio a uma crise de gargalhadas.

- Mas, como é que você pode rir de uma coisa séria destas!

- Que foi, mãe?

- O gato! – repetiu Áurea, no auge da indignação – O desgraçado voltou, você não ouviu?

- Ouvi mãe – e tornou a miar, confiada na presença do pai.

Dona Áurea descontrolou-se, o marido segurava-se na mesa para não cair, as pernas fracas de tanto rir. Num rompante de indignação entendeu tudo:

- Você sabia!

E discorreu mais de meia hora contra aquele atrevimento, da menina, do marido, mancomunados para fazê-la de besta! De longe se ouvia a chuva de gargalhadas de João. Essa Áurea! Até mesmo a meia hora de impropérios furiosos fazia parte do show.

ProfessoraNadia
Enviado por ProfessoraNadia em 16/12/2007
Reeditado em 19/10/2012
Código do texto: T780945
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.