DOS ANJOS CAÍDOS

Um menino lindo, o Felipe. Desde que nasceu a mãe o exibia como a um troféu à bela causa, e fazia furor entre as outras mães, que não tinham um menino tão belo.

- Barriga limpa, hein? – consideravam as amigas, invejosas daquele anjinho louro de olhos muito, muito, verdes.

O pai, que sob a superfície polida de citadino litorâneo, escondia a rudeza crua dos sertanejos toscos que lhe habitavam os genes, considerava-o bonito demais para um homem, um estorvo mesmo. Bonito demais. Ser bonito demais para um homem, era uma acusação, quase. Esquecia-se das suas origens sertaneja, de sangues que se misturaram, português e holandês, às índias da terra, dadeiras de primeira, barrigas limpas que davam origem a essas criaturas bonitas, de pele e cabelo dourados, olhos verdes e boca rubra.

Esquecia-se que ele mesmo fora um rapaz bonito, num tempo em que nem ele mesmo se lembrava. Lembrava apenas que homem pode ser tudo, menos “bonitinho”, “engraçadinho”, uma “gracinha”.

Aliás, tudo o que cheirasse a “gracinha” era suspeito, era errado, era – segundo seu registro sertanejo primal - coisa de viado. E coisa de viado era realmente o fim.

Apesar de haver sido criado na cidade – que nunca chegou realmente a ser grande – havia a homofobia primordial de homem nordestino, interiorano, que acha que qualquer coisa cor de rosa é coisa de fresco, de baitola, de dadeiro; coisas horríveis passíveis da mais dura e brutal repressão. Por repressão, aliás, se entenda surra, escracho, e coisas que tais.

Esse era o pensamento, ampliado em vozes múltiplas na roda bem educada da cervejota do final de semana, nas lanchas, nas escunas, no clube fechado, para poucos e bons.

Quando o filho de um deles revelou-se bi, a pergunta era geral:

- Mas, e o que peste é bi?

Esclarecido o fato que bi significava bissexual e que bissexual era o indivíduo que gostava de meninos e meninas, a indignação foi geral. Tão geral que o pai do indigitado bi afastou-se da roda de cerveja, vendeu a lancha e o Jet ski. Nunca mais foi visto, mudou de ramo de negócio, enfim... escafedeu-se.

A mãe de Felipe que se referia a seu filho como meu anjinho, levava esporros públicos:

- Acabe com essa mania infeliz de chamar esse menino assim, mulher! “Meu anjinho” o escambau! Ora, porra! Isso é um homem.

E o Felipe? O Felipe não era bi, coisa nenhuma! Mas que bi que nada!

O Felipe era mesmo um cara que gostava dos caras, e só gostava de outros caras.

Viado? Não, viado não, que coisa mais feia ser viado, nisso concordava com o pai. Fazer trejeitos, ser bandeiroso. Deselegante, isso. E Felipe era muito elegante, como a mãe.

Um dia, a mãe do Felipe - que jurava ser diferente das outras mães, mas não era – estava, como de hábito, de ouvido colado na portado quarto, quando escutou estupefata:

- Eu fiquei com ele sim, ontem! Ah, to apaixonado por ele, véi... Ele é... Pô! Véi... Ele é demais!

O “ele” foi inconfundível, não era “ela” era “ele”... Ele, ele.... Não agüentou mais:

- Felipe, você gosta de homem, é? – perguntou a mãe num tom calmíssimo, entrando de susto no quarto.

- Como é, mãe?

- Estou perguntando se você namora com homem, Felipe! – disse ela num tom alto, descambando para o histerismo.

- Gosto não. Namoro não.

- Não minta pra mim, Felipe! – disse ela já completamente histérica – Eu ouvi, eu ouvi!

- Se ouviu, então, por que pergunta? – disse o anjo caído, já de pé, com lágrimas nos olhos.

- Vou contar pro teu pai!

E contou.

Porém, Felipe, trazendo ele também no sangue, no mais íntimo dos seus cromossomos, a fala honesta e bruta dos tais sertanejos, seus respeitáveis ancestrais, não mentiu nem enganou:

- Namoro com homem, não gosto de mulher! E não, não sou viado, nem sou bi, nada... eu só não gosto de mulher!

Instalou-se a guerra sem quartel.

Todos os sertanejos adormecidos no sangue do pai do anjo acordaram enraivecidos, brutais. Tapa na cara, repreensão com palavras do mais baixo calão, prisão doméstica, cárcere privado, cessação de direitos do ir e vir.

Dezoito anos? Cinqüenta que o anjo tivesse, era seu filho – argumentava o pai, andando pela sala como uma onça na jaula - necessário reprimir, necessário salvar da viadice, de um destino pior que a morte!

E eis o anjo aprisionado. A mãe chora, em parte por que foi fuçar até saber o preferiria ignorar, em parte por presenciar o sofrimento atroz.

O pai, porém, mantém-se firme: vai curar o filho da viadice, custe o que custar.

Os amigos sentem falta da presença alegre do menino feliz.

O namorado, elevado, pela ausência forçada, ao status de “marido” sofre a privação do carinho do anjo, mas nem tanto – outro anjo haverá, anjos não faltam.

O anjo, porém, no melhor estilo sheakespiriano, sonha e espera a oportunidade de voltar aos braços do “marido”, naquele momento agônico o homem da sua vida, aquele mesmo da boca linda, das mãos gentis, do cabelo cacheado de anjo moreno. Aquele que canta, que voa e que... Ai! E que o faz tão feliz.

14/02/07

Pro Pedro.