Reencontro

Lica olhou as horas na tela do celular, Mel chegaria às 18h. Faltava pouco tempo, entretanto, a apreensão conferia à espera um ritmo lento. Aquele reencontro era deveras especial. Uma promessa cumprida, enfim. Tantas outras pessoas disseram o mesmo e não honraram a palavra. Não, não criaria expectativas, elas agora eram adultas, tinham posicionamentos políticos distintos, logo seriam apenas contatos esquecidos nas redes sociais.

Com o fim das férias, a movimentação do shopping havia voltado aos patamares comuns em dias comerciais, embora aquele horário fosse complicado porque as mesas aos poucos iam sendo ocupadas. Se Mel desmarcasse em cima da hora, tudo bem também. Tirou um livro da mochila, tentou se concentrar na leitura, mas não conseguiu. Fechou-o e guardou-o de novo. Verificou o celular.

Estou quase chegando. Quando eu estiver dentro do shopping te aviso, digitou Mel.

Apesar de muitos fatos de vinte anos atrás terem se apagado, outros ainda continuavam vívidos. Mel não era o tipo de amiga que marcava algo e não aparecia, falava na lata e não pelas costas e não fazia a menor questão de ser unanimidade porque nem ela nem ninguém gostava de todo mundo.

Lica e Mel conheceram-se no segundo ano do ensino médio. A primeira não conseguiu vaga no turno da manhã e caiu em uma turma problemática da tarde, enquanto a segunda foi transferida para um colégio público após uma vida inteira em uma instituição privada.

— Oi! Você sabe onde fica a sala do segundo ano? — Mel usava o uniforme do colégio e estava de mochila nas costas quando se aproximou de Lica, que à época usava o cabelo curtinho, pulseiras coloridas, esmalte Pink e esbanjava simpatia.

— Oi! Sei, sim. Tem três, mas relaxa que eu vou te ajudar. Como é que você se chama?

— Eu me chamo Mel.

Alícia Monteiro verificou a lista dos alunos que estariam na sua classe naquele ano e encontrou o nome Melinda Alves.

— Aqui tem uma Melinda, mas...

— Deixa quieto — pediu Mel. — Meu nome é Melinda, mas prefiro que me chamem de Mel.

— Meu nome é Alícia, mas atendo por Lica. Nunca te vi antes, você é aluna nova?

— Ah, sou sim. Eu era do Sagrado Coração. Aqui tem 6 aulas também?

— Não, só cinco mesmo.

A partir daquele momento, Lica e Mel firmaram uma bem-sucedida amizade, trocavam cartinhas, conversavam bastante ao telefone, mesmo quando estudaram em turnos diferentes. Prometeram ser amigas para sempre, mas a vida tinha outros planos.

Tantos anos depois, as amigas de longas datas marcaram de tomar um café juntas no shopping. Não se viam pessoalmente havia uma década, no entanto, após um longo afastamento, se aproximaram por meio das redes sociais e combinaram de colocar as conversas em dia, sem culpar a tal da correria. Para aqueles que têm iniciativa e boa vontade, tudo sempre se encaixa.

Lica havia saído do trabalho e chegado antes ao local combinado. Mel avisou que já havia chegado, no entanto, não a encontrou.

Eu estou de cropped lilás e cigarrete preta. Ao lado da franquia de comida japonesa, digitou Lica no aplicativo de mensagens.

Ao guardar o smartphone na bolsa, Lica ergueu a cabeça e reconheceu Mel, acenando para que ela a reconhecesse.

— Lica!

— Mel!

— Quanto tempo!

Elas se abraçaram apertado, compartilhando de uma alegria recíproca, gratas por aquele instante, por aquela oportunidade que a vida lhes dava.

— Devo ter te visto, mas num primeiro momento não te reconheci, Lica. Também, né? Você não disse que tinha mudado o cabelo — explicou Mel. — Como vai você, minha amiga? Até deixou o cabelo crescer! Quem diria?

— Mudar é preciso de vez em quando, sabe, para a vida não entrar num looping infinito de tédio. Vai, me fala sobre você...

— Você não tem ideia do quanto eu estou feliz por reencontrar você!

— E eu, então? — exultou Lica. — Você foi uma das minhas melhores amigas no tempo da escola, mas então a gente foi aos poucos perdendo o contato...

— Mas agora retomamos o contato e é isso que importa! E aí, para onde vamos?

— Que tal uma cafeteria que fica no segundo piso? Você vai gostar muito de lá. É um ambiente aconchegante e o café é ótimo.

— Por mim, tudo bem. — Concordou Mel.

Lica e Mel deram uma longa volta pelos largos corredores do shopping até encontrarem a escada rolante que dava acesso ao segundo piso. Olharam algumas vitrines enquanto localizavam a referida cafeteria. A decoração era um caso à parte, a paleta de cores se harmonizava bem com a disposição dos móveis e tornava aquele espaço funcional. Era incomum que naquela hora do dia o movimento fosse tão baixo, porém aqueles que detestavam música alta — e de gosto duvidoso, diga-se de passagem —, lá era um refúgio.

Não havia fila até o balcão e as amigas foram atendidas por uma funcionária uniformizada que anotou os pedidos delas no computador, imprimindo uma nota com a senhora e entregando-lhes um aparelhinho que vibraria quando tudo estivesse pronto. Escolheram uma mesa reservada e discorreram sobre assuntos triviais até que o colóquio se aprofundasse. Uma xícara de café seria pouco.

— Hoje eu vejo a situação de outra forma e não posso negar que sinto certa vergonha de ter surtado tanto por causa de alguém que teve boas oportunidades de me fazer feliz e nunca quis de verdade. O que ele queria era me ter por perto para me chamar sempre que estivesse carente e sem opções. Eu era um cachorrinho carente por atenção e acreditava nos elogios bobos.

— Ainda bem que você superou tudo isso. Lembro da época em que você ficou totalmente destruída com aquele golpe baixo. Porque foi.

— Se ele tinha más intenções, foi livramento. Ponto. Se não aconteceu, não era para ter acontecido.

— Fico feliz que você tenha se permitido ser amada... ah... e esteja amando também.

— Nem dá para acreditar que enfim tudo está dando certo na minha vida. Imagina só que quando eu o conheci não sabia que viria a amá-lo tanto, cheguei até a desistir de amar, achava que minha vida seria sempre gostar de quem não gostava de mim, que nunca chamaria atenção de alguém legal. Não parecia muito possível num primeiro momento, mas posso dizer que ter aceitado que esse sentimento crescesse dentro de mim fez com que eu pudesse enxergar tudo mais claramente. Foi assim que eu entendi que brigar comigo mesma não apagaria o amor que eu já sentia, um amor que começou um pouco tímido, sem jeito, mas que hoje me complementa e me faz mais feliz do que eu já sou.

— Essas palavras muito me alegram. Às vezes eu me sentia impotente quando via você se depreciar, se maltratar, se humilhar por amizades. Era muito ruim ver você se permitindo ser maltratada pelas pessoas por não ter consciência de quem realmente era. Eu queria te dizer tantas coisas, mas dizer o que você queria ouvir era fácil, no entanto, não me faria uma boa amiga porque embora você pudesse se zangar — e você se zangou —, no fundo você sabia que era aquilo que você precisava ouvir. Sentir raiva só confirmava isso tudo.

— Todos os dias eu luto do momento em que acordo até quando me deito para dormir para ser uma pessoa melhor. Ainda tenho um longo caminho pela frente. Aprender a me amar exige que eu me comprometa como eu faço com os estudos, o trabalho, enfim, com cada departamento da minha vida.

— É isso mesmo. É preciso buscar o equilíbrio para que a vida flua em harmonia.

— Saiba que eu te agradeço por ter me dado aquela chacoalhada. Na época eu fiquei de cara, não gostei do que ouvi, te julguei insensível, me ressenti quando você se afastou de mim, o que deu mais motivos para sair chorando pelos cantos e reclamar da vida até não querer mais.

— Mas chega um dia em que nem você mesma aguenta tanta reclamação, se cansa de gastar tanta energia para se manter acomodada que decide dar um basta!

— Sim, esse dia chega, mas às vezes a zona de conforto parece ser um cantinho seguro.

— A gente se acostuma até a sofrer e começa a achar aquilo bom.

— Pois foi o meu caso. Não que eu não tenha sofrimentos hoje. Todos nós sofremos. Hoje, todavia, não perco mais tempo sofrendo por quem não faz questão de mim, pelo que as más línguas dizem de mim por aí, tampouco por coisas sem valor. A vida é curta demais para se perder tanto tempo com coisas que não agregam em nada nas nossas vidas, eu que o diga. Às vezes eu me pego lamentando por ter demorado tanto para entender o que estava embaixo do meu nariz o tempo todo, mas então tento me confortar ao pensar que tudo acontece quando deve acontecer e que naquela época eu tinha uma forma de ver o mundo, diferente de hoje.

Mel formou-se em Direito, porém ganhava a vida atuando em outra área, sonhava em ser aprovada em um concurso público para obter a tão almejada e merecida estabilidade. Já Lica era aquela jovem conhecida por saber o que queria, no entanto, logo ela, a decidida, não parecia mais tão certa assim do que desejava para si.

— Eu não queria contar a ele que ainda não me formei, mas ao mesmo tempo eu não queria começar nossa história mentindo. Ele entende a minha situação, me incentiva a voltar a escrever.

— Poxa, você cursou mais de 90% do curso, Lica. Não deveria desistir. Isso sempre foi o seu sonho. Lembro que lá na escola você já dizia que queria isso, todo mundo admirava você por ser tão focada enquanto a maioria de nós ainda estava tentando saber o que fazia nesse mundão.

— Não quero falar sobre isso. A gente pode mudar de assunto? — pediu Lica.

— E daí se você se formar com 35 ou 36 anos? Qual é o problema?

— Nenhum... acontece que na hora de procurar uma vaga de estágio, por mais que eu escreva bem, me expresse bem e tenha vontade de trabalhar, prometem entrar em contato e nunca entram ou às vezes nem me dão uma oportunidade sem nem deixar claro o que fiz de errado.

— Você poderia pedir ajuda na faculdade.

— Foi o que eu mais pedi, mas tudo que recebi de volta foram e-mails com frases feitas. Ninguém nunca se dispôs a ajudar em nada. Claro, se eu atrasar a mensalidade em um dia, já vem cobrança. Eu não entendo por que vejo tanta anta cometendo erro crasso por aí escrevendo em portais de notícia na internet e eu não consigo uma oportunidade sequer, ninguém me dá e eu me recuso a ficar escrevendo post pra Instagram que na semana que vem já estará “velho”.

— Eu não tenho paciência para Instagram. Tenho meu perfil, posto fotos e stories para os conhecidos, não tenho muitas curtidas, mas foda-se, não deixo de postar por causa de ninguém.

— Eu trabalhei por algum tempo em uma agência de publicidade...

— Uau, Lica!

— Não ganhava nem metade de um salário-mínimo e meus dois patrões eram uns machistas miseráveis, filhos da puta. Não recebi nenhum treinamento e já me jogaram milhares de atividades para fazer, cobrando produtividade alta e perfeição. Eles faziam marketing para médicos, mas sem ser soberba nem nada, meus posts pessoais conseguem ter mais engajamento do que as postagens deles. Num dia me mandavam refazer o post todo porque “estava raso e superficial”, outro era “emocionado demais”, outro era “frio demais”, nunca estava bom. Sem falar que eles apagavam meu nome da autoria dos textos e os médicos gostavam do meu trabalho, sem saber que era eu que fazia e entregava todo o conteúdo com duas ou mais semanas de antecedência.

— Que canalhas. Na certa não suportavam que uma mulher escrevesse melhor do que eles.

— Entre eles, o feedback do texto vinha acompanhado de uma rasgação de seda, com a outra estagiária não implicavam, era só comigo. Tudo era motivo de implicar. Chegou um tempo em que eu mal fazia o login na plataforma de trabalho e a crise de ansiedade começava porque eu já sabia que viria desaforo, que eles tratariam de me atormentar. E eles sabiam a minha idade, decerto achando que eu não era ninguém só porque não era médica. A gota d’água veio quando precisei fazer uma consulta, avisei tudo certinho, tudo direitinho e eles esperaram passar o fim de semana para me demitir no final da segunda-feira, por mensagem de Whatsapp, me bloqueando em seguida.

— Que bom que você se livrou desses embustes. — Opinou Mel.

— O que foi a gota d’água para mim aconteceu nesses dias, Melzinha: entrei na agência de empregos e vi a mesma vaga. Presta atenção no detalhe: pagando o triplo do que eu ganhava, premiando hora extra, tudo. Não pude deixar de me sentir injustiçada. Vai ver eles se achavam melhores do que eu porque tinham a mesma idade e já têm a própria empresa enquanto eu ainda nem formada sou.

— Uma amiga nossa se formou em Administração com 21 e agora, depois de um tempão, está feliz da vida porque vai realizar o sonho de estudar Pedagogia. Nós somos muito jovens, sim. Eu estou na metade de outro curso, mas não desisti de estudar História. Se você não escreve bem, não sei o que esperar da vida, então.

— Eu trabalharia como vendedora e caixa de supermercado, mas para tudo exigem experiência. Daqui a pouco até para ser balconista de padaria vai exigir domínio dos pacotes Adobe, francês intermediário, inglês avançado, pessoas proativas, resilientes e que adoram desafios.

— Dinheiro nenhum compra a paz de espírito, amiga. Quando uma porta se fecha, outra muito melhor estará se abrindo. Nem esses estágios de ensino médio pagam essa mixaria, você merece mais. Voltando o assunto da faculdade, eles têm que arranjar um orientador para o seu TCC sim, você tem esse direito e ninguém pode te negar.

Lica não pretendia expor em um primeiro momento o que a levou a trancar a faculdade e declarar hiato em sua carreira de escritora, mas havia dentro dela uma inquietação, uma indignação, um sentimento que talvez não possuísse um equivalente, como se fosse fome, talvez fosse um tipo de fome abstrata, cujo alimento dependia de ideias e iniciativas. Exprimir aquelas angústias que não compartilhava nem com o amado porque sempre desconversava, a fazia bem.

O aparelho de Lica vibrou dentro da bolsa: era uma chamada de vídeo de Léo, seu namorado. Mel reparou no viço da pele da amiga, naquele sorriso sincero e genuíno que abriu ao cumprimentar o amado.

— Oi amor, eu estou aqui no shopping com a Mel. Como é que você tá? — Lica convidou Mel a aparecer na ligação e mesmo um pouco encabulada, a amiga cumprimentou Léo, que havia aproveitado um breve intervalo no trabalho para conversar com a namorada. — Também te amo. Beijo.

— O Léo é mais velho que você?

— É, sim. A gente tem 10 anos de diferença, mas você sabe que eu nunca tive paciência com os caras da nossa idade nem na época da escola.

— Mas fazia sucesso entre os meninos do 1º e 2º ano. O João que o diga.

— Nunca mais tive notícias do João.

— Na verdade, nem eu. O João era uma gracinha na época, você parecia mais alta do que ele.

— Engraçadinha...

— Uma pena que você não ficou com ele. Os meninos do 1º ano te achavam a maior gata. O João tinha concorrência.

— Em compensação, os meninos da nossa turma me achavam uma bruxa horrorosa.

— Será mesmo, Lica?

Lica deu de ombros.

— Que se dane. Eu nunca gostei de caras da minha idade mesmo, sempre gostei de homens mais velhos. Sempre gostei de homem maduro, que sabe o que quer, que deixa tudo às claras, que não fica se atendo só à cor do olho e do cabelo para determinar o valor de uma mulher, que faz a mulher se sentir amada, protegida e segura. O Léo diz que ao meu lado está vivendo a sua segunda adolescência, uma adolescência com o pé no chão e a cabeça no lugar, mas sentindo coisas que achou que jamais sentiria de novo e é assim que eu me sinto também, a diferença é que estou vivendo tudo que eu sonhei, estou vivendo meu primeiro amor de verdade só agora, depois que todo mundo da minha idade já se casou e teve filho.

— E daí? Muita gente já se divorciou, quebrou a cara... eu mesma ainda não vivi aquele grande amor da vida, só sei que me aposentei de paquera porque concordo com você, alguns caras da nossa idade continuam com aquela cabeça de adolescente, não se tocam que já cresceram faz tempo, continuam agindo como moleques que não querem nada com nada. Lógico que não estou totalmente fechada. Ainda espero sim casar e ter filhos, só não vou me desesperar com isso. Enquanto minha hora não chega, vou investindo na carreira. Se você quer saber, estou sem beijar na boca faz quatro anos.

— Eu fiquei uns 15, 16 anos sem beijar ninguém.

— Tudo isso?

— Mas pelo menos a espera foi boa porque quem me deu meu primeiro beijo com amor foi o Léo e ele foi incrível.

— Posso apostar...

— Para ser bem honesta, eu ainda não fiz amor com o Léo.

— Não? — Lica espantou-se.

— A gente dá uns beijos, uns amassos, até conversa de boa sobre o assunto, mas ele diz que quando eu estiver me sentindo pronta, a gente faz. Na verdade, eu tenho subido pelas paredes de vontade, porém tem algo que me trava. Eu ganhei um pouco de peso no ano passado e mesmo que ele me ache maravilhosa, fico constrangida com o meu corpo.

— Que besteira! Os caras muitas vezes nem sabem o que é celulite, nem se importam. A gente é que encana com tudo isso. O Léo me parece ser um cara legal. Podem falar o que quiserem, mas a primeira vez tem que ser especial, amiga.

— Parecemos duas adolescentes falando sobre esse assunto — riu Lica.

— Se você gosta mesmo do Léo, se sente à vontade e está no clima, vai fundo.

Lica confidenciou a Léo sobre um capítulo dramático de sua vida. Por essa razão ainda não haviam transado. Ele era um homem de bom caráter, honesto, tranquilo, cordial, tanto é que nunca terminou relacionamentos brigado com as companheiras. Seu próspero casamento chegou ao fim de comum acordo e sem nenhum alarde, eles compreenderam que era momento de crescerem juntos, mas separados. Foi doloroso, sim. Permitiu-se sofrer e determinar quando pararia.

Conheceu Lica no que se pode definir "por um acaso" e foi conquistado pela sinceridade e simplicidade dela, pela meiguice dosada com atitude, porque quando a via, a vontade de abraçá-la e protegê-la tomava conta de seu coração. Logo ele, tão tímido quando se tratava de expor sentimentos, só tomou a iniciativa do primeiro beijo quando viu o queixinho dela sujo de sorvete de chocolate, foi a deixa perfeita.

Léo a princípio temeu que a distância geográfica e diferença de idade pudessem ser um inconveniente, no entanto, os recursos tecnológicos ajudavam a matar a saudade até os encontros físicos serem possíveis. Eram adultos, pautados no consentimento, no respeito e dispostos a ficar juntos. Os bons amigos se tornaram namorados e decidiram viver aquele sentimento. Nunca passaria por cima das ordens dela, quem ama sempre espera.

Inevitável não se consternar ao ouvir uma história tenebrosa que transformou a garota alegre em uma mulher traumatizada. Em suas veias percorreu o que muitos classificariam como "ódio retroativo". Desejou saber o nome daquele pervertido, pedindo a Deus que jamais encontrasse aquele sujeito na sua frente, contudo, logo afastou aquele pensamento imundo. Só não permitiria, enquanto vivesse, que ninguém fizesse mal à sua amada.

— Nós nos conhecemos há 20 anos e não temos uma única foto juntas! — refletiu Lica.

— O pior é que é verdade! — concordou Mel.

— Joguei fora muitas lembranças daquela época, de gente que depois mostrou ser falsa, mas as suas cartinhas eu guardo até hoje.

— Eu acho que ainda guardei as suas cartinhas. Preciso ver lá em casa.

— Podemos quebrar nosso jejum de fotos agora mesmo! — propôs Lica, já posicionando a câmera do celular para uma selfie em grupo.

Assim que terminou a sessão de fotos, Lica enviou todos os arquivos para Mel e elas passaram algum tempo olhando as imagens.

— O tempo só nos fez bem. — disse Mel.

— Se nós tivéssemos acesso a todas as tecnologias naquela época, você acha que nossa turma teria se afastado?

— Talvez sim, talvez não.

— Ao menos a gente poderia continuar conversando por mensagem, chamada de vídeo, interagindo nos posts, nos stories, não perderia contato.

— Ou talvez, bem aos poucos, perderia. Infelizmente, Lica, a vida iria mudar de qualquer jeito, com ou sem a tecnologia a nosso favor. Cada um iria fazer suas escolhas, viver a sua própria vida, faria novas amizades e tudo seria como foi. A gente se conforta com aquela ilusão de refazer o tempo e apagar tudo que deu errado, mas a verdade é que a gente também fez o mesmo: escolhas, novas amizades, novos interesses. O importante mesmo é que um dia a gente esteve junto e foi feliz. Naquele momento algumas pessoas faziam sentido...

— Eu fiquei muito puta da cara com a Deh convidou você para a festa dela e me ignorou total.

— Quer saber de uma coisa? Eu nunca gostei da Deh. Eu a tolerava por causa de você, da Danny e das gêmeas. Meu santo não batia com o dela.

— Não? Eu pensei que você era best da Danny e da Deh até hoje.

— Eu não vejo a Danny pessoalmente há mais de 10 anos e briguei com a Deh, bloqueei, se vir na rua, troco de calçada. Até tenho a Danny adicionada, curto algumas coisas que ela posta, mas não sou amiga de infância dela, não. A ponte que unia todo mundo era você, Lica. Nunca foi a Danny nem a Deh, sempre foi você. Os meninos e as gêmeas gostavam de você. Eles me acolheram bem quando eu mudei para a manhã porque sabiam que você gostava de mim e eles sentiam muito a sua falta, mas respeitavam o seu desejo de estudar à tarde. Aliás, eu nunca falei nada sobre a Deh porque achei que vocês eram amigas até hoje.

— Em 2008 eu cheguei a ficar mais próxima da Deh porque ela veio conversar comigo quando passou por uma situação difícil e eu me senti honrada porque à época ela disse que eu era a amiga com quem ela podia conversar sobre assuntos sérios. Eu acabei gostando de saber que a Deh me achava madura e centrada, foi bom conhecê-la de um jeito que não consegui na escola, só que do nada ela mudou comigo e eu fiquei sem entender. Foi um murro no estômago descobrir que ela parou de falar comigo porque a Danny mandou.

— A Deh tem ciúme da Danny até hoje. — Mel revirou os olhos.

— A Deh só me usou enquanto a Danny estava namorando, mas assim que a Danny estalou os dedos, me descartou como se eu fosse uma sucata e eu, pensando que fiz algo de errado, fiquei com o coração partido. Chorei litros quando ela postou fotos com você e com a Danny, com textão sobre amizade e eu sempre pedia notícias suas para ela, propunha que a gente saísse juntas. Não posso mentir, eu me senti bem traída.

— Ê Lica, quase vinte anos depois você não mudou nada, continua sendo a rainha do drama.

— Você no meu lugar teria sentido o mesmo, nem vem!

— Eu nem me lembro desse dia! — devolveu Mel, com desdém. — Aliás, eu estava numa merda danada porque você sabe que jovem faz muita besteira com a vida. Lembra do Mateus?

— O pagodeiro?

Mel fez que sim com a cabeça.

— Ele mesmo! — Mel mexeu nos cabelos: — Pois então, eu perdi a virgindade com ele na época da escola.

— Lembro da cartinha que você me mandou sobre estar estressada com a infantilidade da Deh e da Danny por causa de sexo.

— Você ainda lembra? — Mel caiu no riso. — Você tem uma memória muito privilegiada!

— Você disse que foi bom...

— Ah, isso foi. Então, na época, o Mateus era mais velho. Eu sempre gostei de pegar roqueiro, skatista, pagodeiro não fazia muito o meu tipo, mas o Mateus parecia ser legal e eu estava cansada de sofrer por causa do Diego. Lembra dele, né? E o Mateus demonstrava que me achava bonita, legal, queria compromisso e a gente começou a namorar. Ele era mais velho que nem o Léo, tipo uns 10 anos, eu tinha 17 para 18 e ele fez 28. Era de boa, não tinha muita cobrança, muita pressão e num dia a gente transou. Foi ótimo, foi legal, não me arrependo, mas depois de um tempo a gente terminou. Depois de terminar a escola eu fiz um curso de contabilidade no turno da noite lá na escola mesmo e sempre encontrava o Mateus quando ia pegar o ônibus de volta para casa, nisso a gente se entendeu, voltou a namorar e foi a morar junto.

— Lembro que você tirou o Orkut e aí ficou difícil de manter contato, mas eu senti muito a sua falta.

— Morar junto é um negócio muito sério, Lica. Não sei se você e o Léo estão pensando em fazer isso, mas se estão, espero que tudo seja pensado porque você vai ter que conviver com ele todo dia, com o pacote completo, discutir relação, falar sobre as contas da casa, dividir os trabalhos de casa, ter que ceder em algumas coisas, aprender a tolerar certas coisas, sim, o que pode e deve ser tolerado. Eu não tinha nem 20 anos, mal tinha saído da escola, foi um baque. No começo tudo era legal, depois foi perdendo o encanto, chegando a um ponto em que não dava mais. Saí com uma mão na frente e a outra atrás, mas meus pais me receberam de volta com os braços abertos. O problema é que eles não estavam gostando das minhas saídas porque nessa época de curtir a vida adoidado, a Deh e a Danny embarcaram comigo, não se importavam de fazer programas arriscados, ir pra baladas fuleiras por causa de algum cara, mas a Deh, quando bebia, virava outra pessoa, a Danny já sumiu três dias depois de um porre e eu estava indo para o mesmo caminho.

Lica e Mel fizeram um novo pedido para a balconista, dessa forma poderiam ficar mais um pouquinho na cafeteria. Já passava das 21h e as amigas nem sentiam a hora passar, aliás, na companhia uma da outra, foi como se aqueles anos todos nunca tivessem se passado.

— A Deh me achava muito careta, muito bobinha para o gosto dela.

— Você pode pensar que perdeu muita coisa, mas não perdeu nada, Lica. Nada. Esse tipo de diversão, se é que pode se chamar assim, não agrega em nada. Você acorda com uma dor de cabeça horrível, dor de estômago, às vezes nem se lembra direito do que aconteceu e ao mesmo tempo em que nas fotos pode parecer super descolado ter um monte de amigos, não eram pessoas amigas, eram pessoas que queriam levar para o mau caminho, que na primeira oportunidade não hesitariam em te deixar de lado.

— Então as fotos enganavam.

— Cheguei a perder o vestibular por causa disso e recebi um ultimato dos meus pais: ou eu entrava nos eixos ou teria que ir embora. O negócio foi sério. A Danny reprovou na faculdade, a mãe dela descobriu e cancelou a matrícula, falou que não pagaria um só centavo para bancar uma viciada e ela se endireitou, já a Deh, que fazia só o que queria, deu no que deu. Um filho de cada pai, indireta sobre zé droguinha que não paga pensão, no limbo, invejando todo mundo que batalha para vencer na vida... mas a colheita chega. Se hoje ela está isolada é porque fez por merecer, desprezou muitos caras legais que queriam mesmo ficar com ela, se achava a top das galáxias, cheia dos contatinhos, só queria andar com gente descolada, que tinha grana, zoando de quem estava estudando, dizendo que os sonhos dos outros não iriam levar a nada e enquanto ela continuou pagando de eterna adolescente, todo mundo cresceu, progrediu, venceu na vida. Aí não adianta culpar o governo, seja ele qual for. Enquanto ela não for humilde e não reconhecer as merdas que faz, não vai sair do lugar. Desculpa o desabafo, mas é isso, Lica. Você não perdeu nada.

— Passei todos aqueles anos me sentindo a pior pessoa do mundo, pensei que tinha jogado a minha juventude fora, que tinha algo de errado comigo. Perdi tantos fins de semana chorando porque não era convidada para nada, acompanhando a vida da Deh, sentindo que tinha perdido tudo na vida.

— Ê Lica, você não perdeu nada. É muito melhor ficar em casa sossegada, vendo TV, lendo um livro, navegando na internet do que nessas baladas fedendo a cigarro, cheias de homem escroto que vem pra cima sem educação, que sai xingando se leva um fora. Você não iria se sentir bem. No começo é legal, depois enche o saco, sem falar que balada não é o lugar de quem quer encontrar um amor, uma parceria para a vida. Além disso, a Deh nunca gostou de você e não era referência de nada.

— Até hoje tenho mágoas de não ter sido convidada para os 18 anos da Júlia e da Lívia.

— Sei que não devia remexer no passado e me desculpa mesmo por fazer isso, mas as aniversariantes queriam você na festa, então a Deh não queria, daí se a Deh não fosse, a Lelê e a Jujuba também não viriam porque o restante das meninas iria se encontrar no terminal para de lá chegarem à casa das aniversariantes. Para elas a Deh jurou que passou na sua casa e que você não atendeu.

— Que mentirosa escrota! Ela não passou lá em casa porcaria nenhuma! Eu lembro bem! Era fim de semana e a rua estava deserta, eu teria ouvido se ela tivesse me chamado. Ela sabia o meu telefone e ainda tinha orelhão do lado da minha casa, era só atravessar a rua e dar um toque que eu desceria para abrir a porta.

— As meninas ficaram tristes, estavam sentindo falta de você. A festa foi legal, era do pijama, a gente brincou no karaokê, dançou, tirou foto, tinha muita coisa gostosa para comer, assistiu a alguns filmes, colocou o colchão na sala e conversou até dormir.

— E eu perdi isso.

— Para ser bem sincera, você iria detestar o papo: só falavam dos rebeldes lá. A Deh até hoje é fanática. Eu até cheguei a assistir, nunca gostei muito, mas não fui tão corajosa quanto você, de admitir na lata que detestava e não tinha paciência.

— Eu tinha só 16, mas era madura demais para assistir àquilo. Nesse sentido, sou traidora da minha geração porque tenho mais o que fazer do que idolatrar seis mexicanos e colocar uma novela escrota num pedestal. Fazer o quê se a minha geração tem mau gosto?

— Naquela época pelo menos tinha música boa para compensar, já hoje em dia...

— Eu odeio quase tudo que faz sucesso hoje em dia, só para variar.

— Para mim, sertanejo de verdade é Tonico e Tinoco, Trio Parada Dura. Esse sertanejo de hoje é tudo, menos universitário. Não tenho saco para ouvir música de hétero top de masculinidade frágil e dor de cotovelo. Nem me pergunte de funk, prefiro me abster de opinar. Parece que vivemos tempos sombrios nas artes e se nós nos posicionarmos, podemos até ser canceladas na internet.

— Então você continua ouvindo rock?

— Vou ouvir rock até morrer.

— Então eu não estou sozinha.

— Não estamos sozinhas não, Lica. Tem muita gente que ama rock nessa cidade, nesse país. O rock pode não estar em alta na mídia, mas quem ama rock vai continuar ouvindo. Vamos ouvir Charlie Brown Jr.

— O Chorão não imagina a falta que faz.

— Tenho todos os discos do Charlie Brown Jr baixados, ouço sempre que quero, para falar a verdade, ouço todo dia. Vai ter show do CPM 22, você vai?

— Quando vai ser?

— Vai ser em junho. Vamos?

— Vamos, com certeza.

Mel reparou que aos poucos as lojas ao entorno da cafeteria iam se fechando, que ela e Lica estavam sozinhas de novo. Eram 22h30 e Léo saía do trabalho depois das 23h.

— Vamos pedir a conta antes que expulsem a gente daqui.

— Eu pago! — Mel ofereceu-se. — Quando eu te convidar para sair, eu pago.

— Você e o Léo com essa mania.

— Quando você chamar o Léo e eu para passear, você paga, mas quando um de nós te chamar para sair, nós pagamos.

Lica ainda tentou argumentar, porém deu-se por vencida. O cinema e a praça de alimentação ainda funcionavam normalmente, contudo, devagarinho o som ambiente ficava mais baixinho, as luzes iam se apagando e as amigas caminhavam em direção à saída, no outro dia acordariam cedo e naturalmente já estavam muito cansadas.

— Eu não moro tão longe assim da sua casa. Em vez de irmos em carros separados, podemos fazer duas paradas: uma na sua casa e outra na minha, que tal?

— Pode ser!

O carro demorou alguns minutos para chegar. Léo mandou uma foto para Lica, que não pôde evitar o sorriso. Ela e Mel acomodaram-se nos bancos dos passageiros e por coincidência do destino ou não, o motorista devia gostar de rock porque o rádio estava sintonizado na única estação que dava espaço para o rock, já que as demais ou eram de notícias ou foram vendidas para igrejas ou tocavam o que estava na moda.

— Não acredito! — Lica, animada, reconheceu o arranjo de uma música do Charlie Brown Jr que fazia muito sucesso na época em que elas estavam na escola. Mel, mais desinibida, perguntou se o motorista poderia aumentar o volume. As amigas cantaram juntas e até o rapaz, que estava naquela faixa etária, foi contagiado.

— Que saudades dessa época. — Ele comentou. — Saudades de quando meus amigos e eu pegávamos nossos skates e íamos para a pracinha fazer nossas manobras ouvindo Charlie Brown, CPM 22... a gente era feliz e não sabia. Agora cada amigo está num canto, ninguém mais se fala. Tenho dois filhos pequenos e já estou apresentando o rock para eles, manter o legado.

— Você vai ao show do CPM 22? — perguntou Mel.

— Eu fui ao show deles que teve no ano passado. Vai ter outro show neste ano?

— Vai, sim. Em junho, se eu não me engano.

— Então vou avisar uns amigos aí para eles não perderem esse show.

— Avisa mesmo.

— Queria ter ido naquele que teve até o Fresno tocando.

— Na época do Fresno e do NX Zero eu vivia tirando onda com a cara dos emos, mas hoje em dia eu me arrependo porque depois de ouvir o som dos caras, vi que era pura implicância, eles sempre mandaram muito bem porque em vista do que veio...

— Nem me fale! — Lica e Mel pronunciaram juntas e até se olharam espantadas diante de tamanha sintonia.

— Eu sou o Rodrigo. E vocês?

— Eu sou Melinda, mas prefiro ser chamada de Mel.

— Eu sou Alícia, mas desde pequena atendo por Lica.

A sequência musical da estação de rádio tornou aquela viagem muito agradável a ponto de ela merecer seis estrelas no lugar das tradicionais cinco, porém era hora de Lica descer.

— Tchau, Rodrigo. Prazer em conhecer. Tchau, Melzinha.

— Vamos combinar de sair mais vezes.

— Me manda mensagem quando chegar em casa.

— Pode deixar.

Lica desceu do carro, atravessou a rua e tateou dentro da bolsa até encontrar a chave para abrir a porta do prédio. Sentia-se mais animada, mais leve, sentia-se em paz também com o passado, uma espécie de reconciliação. A adolescência foi uma época única e inesquecível, mas lembranças boas poderiam ser construídas em qualquer período de tempo. Aquele encontro entre amigas era a confirmação mais clara disso. Podia-se dizer que o tempo foi um exímio e competente professor porque ensinou, acima de tudo, o significado e o valor de uma amizade incondicional.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 18/06/2023
Reeditado em 18/06/2023
Código do texto: T7816907
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