A Grávida

Letícia começou a colocar as tralhas de Getúlio empilhadas de qualquer jeito no chão da varanda e o marido, sem reação, mantinha as mãos nos bolsos da calça e o vaivém da cabeça enquanto a mulher entrava e saía com as mãos ocupadas, depositando, uma a uma, peças do seu vestuário, sobre um sofá marrom, o descanso predileto dele em fins de tarde. As crianças, duas meninas entre sete e dez anos, corriam em volta da casa, alheias ao que acontecia, como se a cena fosse uma reprise de fatos já ocorridos. Da varanda ao portão ia pequena distância que propiciava a quem passasse na rua um olhar sobre o muro baixo a testemunhar a peleja. O homem sentou-se sobre um dos braços da poltrona, acendeu um cigarro e, como um monge esperou que a esposa se acalmasse, mas ela não dava sinal de que calaria a boca.

- O que está esperando? Pode pegar suas coisas e sair dessa casa – disse, atirando mais uma camisa sobre o sofá. Dessa vez errou o alvo e a peça foi ter nos ombros do outro, por pouco não tendo a manga comprida queimada pela brasa do seu cigarro. Getúlio afastou a mão e, com a outra empurrou a camisa para cima da pilha.

- Essa casa que comprei com o meu dinheiro; não sei se está lembrada.

- Lembro-me perfeitamente. Como também me lembro de que está em meu nome. E nós temos duas filhas, esqueceu?

Ele não teve resposta. Também de nada adiantaria argumentar, só iria irritá-la ainda mais. Getúlio sempre fora um homem mulherengo e folgazão. Letícia não tinha mais porque aceitar aquele tipo de vida. Havia preparado a manhã de domingo para uma notícia especial. Ela tinha certeza de que o deixaria imensamente feliz. Um filho homem. Era tudo que Getúlio mais almejava e ela estava ali, na sua frente, grávida de dois meses, mas não lhe daria esse prazer, não naquele momento.

Ele lhe prometera um almoço fora, especial, com as meninas, mas a orgia falou mais alto e Getúlio abrira a porta de casa às 04h30min da madrugada, embriagado e, de mansinho foi para o quarto e apagou ao lado de Letícia. A mulher, fingindo dormir engoliu a seco a frustração e adiou no coração a boa nova. Fora para a cama àquela noite com a garantia e a promessa de Getúlio de que dessa vez, só dessa vez chegaria cedo à casa, fariam amor e ela embalaria o seu sono com a esperança de que, finalmente teria um marido feliz.

Letícia bateu com tanta força a porta, sumindo dentro de casa que ele não ousaria tentar, naquele momento uma reconciliação com a mulher. De nada adiantaria, ela estava profundamente nervosa e ressentida. O melhor que tinha a fazer era sair; e foi o que fez. Antes, porém, teria que recolher os pertences. Não caberia tudo na mala. Fez o que pôde. Embarafustou o que podia, fechou o zíper e partiu para o carro estacionado no terreno ao lado, de um vizinho, já que não possuía garagem. Foi e voltou umas três vezes até ter pegado todos, ou melhor, parte de seus pertences colocados, ou melhor, jogados de qualquer maneira na varanda. Depois voltaria para pegar o resto.

Enquanto dirigia, ia concatenando as idéias. “Por que Sofia tinha que aparecer em minha vida, será que a amo mais do que amo a Letícia? Será possível a um homem amar a duas mulheres ao mesmo tempo?” Estes questionamentos iam e vinham dentro de sua mente conturbada. Desde que começara a prosperar financeiramente mudou também o comportamento dentro do lar como se uma coisa tivesse relação com a outra. A frustração de não conseguir ter um menino com Letícia parece que exercia influência negativa em sua maneira de agir, ainda que, conscientemente Getúlio não aceitasse essa hipótese.

O amor tem dessas armadilhas; se amamos, acabamos nos acomodando dentro da rotina amorosa e depois somos vitimados pela dúvida de se esse amor é ou não verdadeiro. Isto estava acontecendo agora com Getúlio. Onze anos de união amorosa e quase isso de felicidade se descontarmos as desavenças inevitáveis que começam a aparecer depois do quarto ano da união, segundo os especialistas. As deles até que não foram muitas e nem foram fortes o suficiente para desestruturar o amor. Eles já tinham Bárbara e Serena veio quatro anos mais tarde para a felicidade de Letícia e a meia felicidade de Getúlio por não ter sido um varão

Estacionou na frente da casa de Sofia. Foi uma decisão automática que tomara enquanto dirigia e era dirigido por seus pensamentos errantes; sabia que àquela hora não a encontraria em casa. Mas qual não foi sua surpresa ao ver a amante regando o jardim, vestida bem à vontade, bermuda branca, uma frente única alaranjada e chinelos de dedo. Ao vê-lo já saindo do carro, exibiu um sorriso largo, foi até à torneira, fechou-a e, abrindo o portão foi recebê-lo na calçada.

- Sua cara não é das melhores. Aconteceu alguma coisa? – ela perguntou depois de beijá-lo nos lábios.

- Letícia botou-me para fora de casa; não quer me ver nem adornado de ouro. Também sou um idiota. Estraguei seu domingo. Quando saí daqui ontem à noite encontrei o Cláudio que me convenceu a adiantar os ensaios.

Cláudio, sendo músico profissional, acabara de incluir Getúlio como baterista de sua banda. Sofia, a vocalista encantou-se por ele no primeiro ensaio que fizeram juntos.

- Mas ainda faltam quase três meses para nossa apresentação. E ele sabe que você é casado e tem uma mulher ciumenta. Afinal, já passavam das onze quando saiu daqui.

- Eu também tenho parte da culpa de não saber dizer não, ainda mais para um amigo como Cláudio.

Os dias se passaram. Getúlio morando agora com a amante; melhor seria dizer ex amante, uma vez que não mais se considerava um homem casado. E quanto ao filho que Letícia esperava; o sonho da vida de Cláudio? Shakespeare dizia que ‘há mais segredos entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã imaginação’. Poderíamos trocar o termo ‘o céu e a Terra’ por ‘no casamento’ sem ficarmos nada a dever a Shakespeare.

Os dias foram sucedidos por semanas que foram sucedidas por meses. Letícia tocava sua vida, o ventre avolumava-se e o plano estava pronto. A mulher sempre tem as suas maneiras de descobrir as coisas e parece que sabe dar o troco no momento certo, por isso Deus as fez inteligentes e perspicazes.

Os ensaios foram intensos, Getúlio estava eufórico e tocando como nunca. Cláudio o elogiando a cada número ensaiado. Sofia estava no auge de sua felicidade ao lado do homem amado e agora só seu; deixava também seu estado de espírito transparecer em suas interpretações, cantando como nunca. O Shopping Center anunciava sua inauguração enfatizando a qualidade do seu show de abertura. O cachê, acima da média daquele tipo de apresentação na cidade corroborava o talento dos músicos. A barriga de Letícia, indo para o quinto mês de gestação impressionava pelo tamanho descomunal e ela foi uma das primeiras a chegar à praça de alimentação, local do espetáculo.

Ao ver o Furgão com os músicos estacionando na vaga, sem se deixar notar, sai de mansinho e desaparece da praça; já havia conversado com um dos atendentes das mesas.

Como esperado, os músicos não decepcionaram. O recinto estava lotado. O espaço para dança não cabia mais de casais e alguns solitários se entregando ao som. Mesas completas, cadeiras ocupadas. Houve o primeiro intervalo e o som ainda melhor na segunda etapa. Veio o segundo intervalo.

- Vamos sentar um pouquinho ali, tem uma mesa vazia e está afastada do tumulto; estou morta de sede – disse Sofia convidando Getúlio. Deram-se as mãos. Era a mesa de Letícia, com uma garrafa e um copo pela metade.

- Hei, amigo, esta mesa está livre? – perguntou Getúlio a um dos atendentes.

- Acho que sim, senhor. A senhora saiu e não voltou mais.

Sentaram-se e não passou cinco minutos até surgir Letícia na frente do casal apalermado. Getúlio ficou branco e sem fala. Sofia sabia quem a outra era, mas ao vê-la naquele estado por pouco não se engasga com a cerveja. Letícia abre a bolsa e tira um papel.

- Podem continuar. Não quero estragar a noite do casal.

- Olhe! – disse, empurrando para frente dos olhos de Getúlio o resultado de um exame.

- Você não queria um filho homem? Pois aí tem dois. Não via a hora de te contar a novidade.

Dizendo isto, meteu de novo o papel na bolsa, virou as costas e deixou o local, ignorando completamente a outra. A apresentação do casal no resto da noite não foi a que o público curtira até ali e eles quase não se falaram depois da cena inesperada.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 18/06/2023
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