DO MESQUINHO FIM DOS PEQUENOS AMORES

O pior de tudo não era ter que incinerar as evidências deixadas pelo amor que havia sentido. Pior mesmo eram as marcas que ficaram invisíveis, como pequenas cicatrizes pelo corpo inteiro.

Aquilo que era tão avassalador e tão imenso, feito de uma matéria horas sutil, horas densa; composto de tantos pequenos sins e grandiosos nãos, lhe haviam roubado tantas vezes a alma e até mesmo a fisionomia, para agora acabar assim, num caldeirão de bruxa, imerso em álcool flamejante, sob olhares indiferentes.

Verdade que há meses já se arrastava na impossibilidade. Um amor tão grande que só sobrevivia no escuro, a portas fechadas, longe do sol? Um amor com jeito e forma de vampiro, de criaturas da noite. Um amor que, apesar de desafiar intolerâncias, era ele mesmo composto de intolerância. O um só podia ser feliz sendo o outro e o outro só podia ser feliz se fosse o um.

A bruxa avisou as gatas que lhe rondavam as pernas:

- Uma imensidão que acabará por engolir inapelavelmente os dois.

E as gatas ronronaram em concordância.

Cada dia um exigia mais de outro, cada dia outro se fazia mais o um. E a bruxa observava, impotente como todas as quiromantes: ver sem interferir, essa é a lei da magia antiga, não se pode modificar os fatos, sob o risco de perda irremediável.

Num sétimo dia as lágrimas finalmente explodiram com a força das represas desmoronadas.

- Estou indo e é sem volta, as mágoas são grandes demais e me esmagam – disse o um com uma frieza sepulcral, uma lâmina bem afiada a enterrar-se num peito frágil do outro.

- Mas, eu quero e posso mudar. Ainda podemos ser felizes, recomeçar – o orgulho baixando à terra, morrendo, a vontade imensa de dar-se além do que já havia sido dado, de violentar-se, para que o outro permanecesse. – Já fiz tanto, farei ainda mais. Fica, por favor, fica.

- Inútil tentar, as mágoas são ervas daninhas poderosas, macularam o amor e o sufocaram. – disse o outro impiedosamente, gozando a dor que provocava.

Esta foi a parte dita. A não dita soava na mente:

- Também, você convive com bruxas e gatos – eu os odeio – e acabarei por odiar você também. Ou eles ou eu.

As lágrimas, sempre escondidas, foram afinal aparentes. Impossível sufocar a imensa dor, o orgulho pisoteado, a ferida aberta no peito tatuado.

O socorro veio de forma inesperada e ainda mais dolorosa:

- Tanto podia fazer que o fez. Não se iluda – disse a bruxa má, impiedosa – Mesmo agora já pode haver outros braços.

O coração revolvido de chamas inclementes. E nada havia que alimentasse o corpo de um, que o outro já não queria.

E na hora extrema, em meio ao caos de gritos e loucura, quando não restava mais nem orgulho, nem dignidade, nem nada que não fizesse para que o outro voltasse, a palavra ferina:

- Nem por todo ouro do mundo, nem por nada, nem por tudo. Nunca mais! Minha vida já não lhe cabe, você não mudará. – disse o outro sem piedade alguma – Sofra, chore, mas me esqueça.

E ainda mais apelos de uma dor cruel:

- Volta para mim, meu amor, volta. Eu faço tudo que você quiser. A gente pode ser feliz outra vez.

- Você errou muito comigo – disse o outro, gozando a dor que provocava e que se achava no direito de provocar – viva sua vida sem mim.

Daí para que o sentimento de revolta nascesse foi apenas um segundo.

- Quer saber – disse um ainda com o peito a flamejar agoniado – Errei com você, para acertar no futuro.

E nada mais se disse. Mas, se diria a bruxa previa, sabia, avisava.

A recuperação veio lenta e cheia de lamentações; no coração marcado tinha um nome tatuado que ainda doía – dizia Bosco – doía só na solidão.

A bruxa lançava seus encantos antigos, sabendo que a cura só viria realmente anos mais tarde e se um deixasse de gostar realmente do outro, se fosse possível esquecer, criar uma parede estéril de perdão que mata.

Ainda

Um dia, revolvidas as chamas da revolta e da paixão, as últimas provas dos fatos consumados, foram parar num caldeirão, em chamas.

E olhos indiferentes viam o mesquinho fim dos pequenos amores, que parecem grandes, virando cinzas e podridão.

14/12/07

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