O Sistema

Quando Orestes começou a trabalhar, ainda ouviam-se as notícias do mundo pelo rádio e nem esperava-se que Ed Kennedy anunciasse o tão esperado fim da Segunda Guerra Mundial. Muito cedo, começou ele a contribuir com o sistema nas plantações de café e cana de açúcar.

Todas as noites, a ver seus pais contar trocados, esperava ele um dia ser dono de uma fazenda igual aquela a que trabalhava e, a reparar as migalhas com que os pais tocavam a vida diariamente, sonhava em pagar bem seus funcionários. Um sonho que, infelizmente, não se concretizou.

Um par de anos seguintes, quando já era mais moço, foi alertado por primos que a vida na cidade grande lhe traria prosperidade. Conseguiria ganhar o dobro, o triplo, quatro vezes mais do que ali e ainda poderia mandar dinheiro para os pais. E assim fez: certa manhã, com um trocadinho no bolso, a se escutar apenas o tilintar das moedas, apercebeu-se dos úmidos olhos de seus pais a se despedirem à porta. Deu-lhes algumas palavras de afago e subiu ao caminhão - a ter como companhia dois outros conhecidos e quantidade considerável de madeira no cavalo mecânico toco.

E na cidade grande, a perceber que as pessoas falavam diferente e que zombavam de si por seu sotaque pouco rebuscado, Orestes começou a ganhar a vida como engraxate. E, a partir da primeira experiência laboral na zona urbana, dedicou-se a outras funções como lavador de pratos, ascensorista, camelô, mestre de obras e, por último, taxista.

Ao completar seu septuagésimo quinto ano de vida, Orestes, pela primeira vez, quis aposentar-se. Afinal, desta já longeva experiência vital, só pudera gozar dezasseis anos apenas de vida. Afora isso, não vivera - apenas trabalhara.

Ao procurar as entidades necessárias - acompanhado de um neto, mais estudado que ele e menos ignorante, pois poderia haver algo a preencher em computadores ou outros aparatos eletrônicos ao qual ele pouco tivera contato -, descobriu que teria de contribuir por pelo menos mais cinco anos.

- Vocês querem que eu trabalhe até os oitenta anos? - redarguiu ele, com dissabor. - Eu mal consigo levantar-me por morrer de dor nas costas e vocês ainda querem que eu trabalhe mais?

- Não somos nós, senhor - replicou a mulher que o atendia, a perceber a razão do homem, pois ela também contribuía há décadas. - É o sistema que exige.

- E se eu morrer entre estes cinco anos? - inquiriu.

- A viúva ou seus herdeiros receberão o auxílio necessário do sistema, senhor - replicou ela, com pouca retórica a recorrer.

- Muito bem, muito bem - levantou-se ele, de súbito, como se já não sofresse de dor nas costas. Sabia que o fato de ter apoiado a retirar o outro governo iria custar caro a trabalhadores como ele. Mas o que é que se podia fazer? A situação já estava ruim, não poderia imaginar que pior se lhe viesse a ocorrer. Aquela era a quarta vez que tentava se aposentar; porém, das outras vezes não tinha vontade. Fizera-os pelo fato de os amigos insistirem tanto. Queriam aproveitar o carteado no bar do Zezé ou conversar na praça durante os domingos. Queriam charlar, pois nunca tiveram tempo para isso. Queria Orestes aproveitar o tempo com a esposa e com os netos tentar suprir o que não teve com os filhos. Mas, sistema. Que maldita porra é o sistema? Um bando de canalhas que rouba dinheiro do povo e ainda exige que este venha a trabalhar. Uma trupe de imbecis que apenas criam taxas acima de taxas para encherem seus bolsos e os hospitais públicos serem uma calamidade; às escolas de seus netos faltarem recursos básicos; não poder sair de noite na rua porque a violência tomou conta do bairro. E por que ele tinha de contribuir mais? Contribuir? Afinal, só se pagava impostos!

Saiu dali irredutível, xingando. O neto, a tentar acalmá-lo, apenas ouvia as milhares de queixas do avô. Parecia não entender a revolta do velho.

Os dias passaram e, a conhecer um pessoal da biqueira, Orestes separou um dinheiro e fez uma compra. Estava reflexivo durante aqueles dias.

Volveu à unidade de atendimento a trabalhadores sem o neto. Dessa vez não pegara a senha; encolerizou-se e, em sua ignorância, vitimou vários funcionários do local. Uns saíram feridos; outros sem vida. Orestes dera-se um tiro na boca - pois não suportaria viver o resto de seus dias atrás das grades. Já bastava a vida sofrida que tivera.

Mal sabia ele que privara de viver pessoas como ele: meros servidores do mal chamado sistema.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 25/06/2023
Código do texto: T7822317
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