Um dia, uma hora, uma semana.

Vejo o guardinha de novo, pela segunda vez. Ele não mudou nada de uma semana pra outra, a única diferença é que agora ele não me aponta mais o caminho. Só grune um "opa", enquanto gira um cordão de que tem na ponta uma chave. Da última vez eu saí pela porta tendo que escolher, no próximo encontro, algo que eu achava interessante pra falar, eleger um assunto. Tento revirar a semana na cabeça, achar algo que ainda não calcificou, morreu, desidratou.

Lavo o rosto. Seco. Lavo outra vez, e de novo, de novo. A água já está no transbordar da pia até o chão. A pressão do jato faz um "chiii" bem sonoro , e quando percebo as primeiras gotas da piscina que se forma na pia, caírem no meu joelho, solto um "caralho" e desligo a torneira, me olho no espelho.

Você vai embora, embora como se o susto tivesse ficado pra trás. Aquele momentinho em que você faz uma cara grande, arregala os olhos, puxa o ar de um jeito estranho e se olha no espelho. O chão está molhado, o ar que você puxa vem agora depois de um semi-sufocar, um mergulho, a pia está inundada. Naquela hora o mundo parecia um susto gigante, um arrepiamento. E aí mesmo que possa ter passado, que o ar que respirado ao sair da porta pra fora fosse novo, até agora você não fez nenhuma pedra afiada do que se desprendeu. Algo que sequer se pareça com alguma coisa. Nem ponta de lança, nem rosa.

Estou sentado ali em frente, já falo a quase meia hora. Coisas pairando a minha cabeça, assim, sem nenhuma sequência de pensamento tão certa, rígida. Era minha primeira vez fazendo aquilo. É um fio tortuoso esse, de desatar. Escolhas que parecem "não-escolhas", fluxos de consciência, são discurso, revelações.

Não sabia nadinha do que esperar, mas atravesso o corredor, o guardinha que está sempre na recepção me recebe, pergunta se quero ajuda, falo que quero, estava atrás da sala n23. Ele rompe o corredor junto comigo diz que pode chamar ele de "branco" que todo mundo o chamava assim, que qualquer coisa estava as ordens. Dou um sorriso. Branco me aponta a porta e diz um "é essa"

Falo que escrever, isso aqui que tô fazendo agora, me ajudava, que é o jeito que achei de encaixar as coisas, deixar o mundo mais colorido, palatável.

Cito Clarice, digo que ela escreveu uma vez, falou pra Fernando Sabino que ler grande sertão veredas, era o explicar de coisas adivinhadas. E aí aquilo, essa frase dela foi um novo susto, um novo assombro.

"Explicar coisas adivinhadas."

Quantas coisas a gente já não sabe sem saber? Quantas coisas não estão na mão da poesia, do pescador que cata com a rede no ar os corpos celestes, o riso meigo, o tempo atrasado. Atrasado. Faltam só mais cinco minutos. Tentei separar as coisas em peças mais ou menos coesas dessa vez, tentei direcionar pra onde a minha cabeça navegaria. Impossível. Impossível saber onde dão os caminhos nunca trilhados.

Você já sabia que ia doer mergulhar de cabeça nessa saga, que ia ser como encher os pulmões com água salgada no respirar, sair do mar arrastando os joelhos na areia, envolvido até o pescoço por lindas, roxas, caravelas ácidas. Sabia não sabendo.

Minha garganta dói, seca, bebo água. Meu sobrinho fala enquanto pula de um pé só, fala como se o tempo e as coisas lineares ainda fossem avião, avião, vento, poeira. Nunca cercado, nunca escada, nunca redoma: "Aí eu fui no parquinho, aí eu brinquei, aí foi legal, aí eu caí, aí eu brinquei"

Eu continuo dizendo que quando eu era criança escrevia mais ficção, agora já é outra coisa. Já sou algo entre criança e homem. Ele quer saber se eu abandonei então a coisa do lúdico, do simbólico. Digo que não, falo que agora é diferente, mas que não abro mão da poesia.Escrevi uma poesia bem estranha, mas esqueci. Começava bonito. Foi de madrugadinha, escutava uma letra do Aldir que era bem assim:

"as frases e as manhãs são espontâneas, levantam do escuro e ninguém pode evitar"

E aí me faiscou a cabeça, e aí eu dormi, e aí eu acordei. Hoje o dia vai ser cheio.

Ele aponta algumas coisas sobre os lugares que eu retorno, resgata algumas palavras que eu usei... já suspeitava, agora parece um pouco mais óbvio: A linguagem é o nosso jeito de alcançar a realidade, de tocá-la. De tocá-la.

"Se o cheiro fosse toque, as minhas digitais teriam pintado o oxigênio"

Essa frase me surge no meio de uma conversa enquanto o professor fala sobre sei lá o que, me brota no juízo, e me revela de novo uma coisa escondida, o assombro. Olho nos seus olhos antes de sair, e vou embora numa mistura de vergonha e tristeza. Giro um pouco pelos corredores, troco um fiapo de conversa com sei lá quem e vou ao banheiro. Lavo o rosto. Seco. Lavo outra vez, e de novo, de novo. A água já está no transbordar da pia até o chão. A pressão do jato faz um "chiii" bem sonoro , e quando percebo as primeiras gotas da piscina de água que se forma na pia, caírem no meu joelho, solto um "caralho" e desligo a torneira, me olho no espelho.