Me liga com Deus?

“Me liga com Deus?”

São três da madrugada. O telefone toca. A não ser que eu seja obstetra, só pode ser notícia ruim. Nas horas mortas do dia coisas vivas acontecem. Lá vou eu.

- Alô?

A voz do outro lado está baixinha. Eu pergunto novamente, agora acordado. Passou a zonzura. Meu telefone é um Panasonic móvel, potente. Não compreendo porque está tão inaudível a ligação. Respondo agora com certo grau de irritação.

- Alôoooooooooou. 224-3404. Com quem deseja falar?

Aí eu ouço novamente algo inesperado e indescritível:

- O Ericsson “Pé de Ferro” está no Rio. Procure na Livraria da Visconde de Pirajá. O Chico vai cantar lá. Fale com a moça bonita.

- Olha, são três horas e o samba tá quente. Não brinca comigo não.

- O Mário e o Napoleão sempre desejaram esse mimo nascido em 1895. Vai ou não vai?

- Quem está falando? Como ousa citar meu pai e o seu tio? Não respeita os mortos?

Desligou. Minha raiva só não foi maior do que a surpresa. Como alguém saberia que irei viajar agora? E os detalhes do mais cobiçado aparelho de telefone do Brasil? O primeiro a unir transmissor e receptor em peça única. E o agravante: apesar de ter herdado toda a coleção e o amor por telefones do meu falecido pai ainda falta-me esta divindade. Acho que só existem uns seis exemplares no Brasil. Um está no museu do Rio e outros dois no Rio Grande do Sul. Os demais nas mãos de colecionadores, que jamais venderiam. Telefone raro é como mulher gostosa, pode olhar, pode ouvir, pode até passar a mão. Mas levar, ninguém leva.

Meu vôo é quarta. Vou acompanhar minha esposa na Meia Maratona do Rio. Ela não conhece a cidade maravilhosa. Onde papai morou mais de trinta anos. Eu mesmo, era pra ter nascido lá. Mas ele veio pra Goiânia, ficar com o meu avô doente. Morei na Montenegro em Ipanema -agora virou Vinícius de Moraes- na minha primeira infância. Vai meu irmão, pega esse avião.

Desço no Santos Dumont. Nem ligo meu pequeno Motorola E310. Rapidamente seria rastreado e no momento do roaming, eles clonam. Fiz a reserva no Hotel Vermont, é na mesma rua do show. Minha mulher me arrasa se fica sabendo que escolhi o destino por causa de um telefonema soturno e sem pé nem cabeça. Se bem que tem pé. Um Pé de Ferro. Esse eu não posso perder.

O motorista escolhe o Aterro do Flamengo depois de passar pelo Museu de Arte Moderna e a Glória. Lá está o Pão de Açúcar. Vou subir, depois. Agora o bondinho não balança mais. Perdeu a graça, mas é seguro. Vejo os Jardins do Burle Marx, quanta briga deu para colocar os postes mais altos do que as árvores... E do meu lado direito o Castelinho, no fim da Dois de Dezembro. Chorei baixinho, ela percebeu. Ali morou o Chico Santos, até 32. Um dos primeiros amigos do meu pai. Que o ajudou bastante quando chegou ao Rio.

- Vai sempre pela praia, que é melhor.

Repeti a mesma frase que inúmeras vezes ouvi dele. Um grande homem, um “bon vivant”.

-Pode deixar. O senhor é daqui? De onde vocês vêm? Tem que dar a volta para chegar à Visconde. O Vermont é no começo dela, acho, pelo número. Já perto do Leblon. Ipanema é Ipanema, me entende?

O sotaque inequívoco do carioca. Os esses arrastados. Ih- pã-neee-ma. Ipanema. Argh! Mas confesso que no fundo, no fundo, eu gosto. Peço para prosseguir. Ao meu lado esquerdo o clube de coração dele, o Botafogo. A melhor piscina do Rio. Pois dela se vê o mar. Garrincha. Pau Grande. Peladas de sábado. Mário Filho lotado, o Maracanã.

- Vira na Princesa Izabel.

- Não tem outro jeito, meu irmãozinho.

Essa intimidade costurada em dois minutos é também típica de região. O Copa. Meu pai nadou em 35, na inauguração da piscina da pérgula e manteve o recorde dela durante muitos anos. De vez em quando o Otávio o chamava, só para vê-lo dar umas braçadas. O calçamento com desenho de ondas é uma belezura, lá do alto do Othon fica lindo de se ver.

Chegando a Ipanema a maioria das ruas têm o nome dos parentes do Barão e datas importantes para ele. Alberto de Campos, o genro. Montenegro, outro genro. A antiga 4 de dezembro, agora Teixeira de Melo. A 28 de agosto, atual Barão da Torre e a 20 de novembro, o nosso destino: Visconde de Pirajá. Mudou tudo, diria ele. Mas ficou igual.

O título é “Versos de Holanda”. Músicas teatralizadas. No terceiro andar da livraria. Ambiente íntimo. Flores no balcão. Um trio afinado e seis atores excelentes. A cantora é pequena e linda. É ela. Meio complicado abordá-la depois do espetáculo. Se você crê em Deus, erga as mãos para os céus e agradeça. Como minha dileta esposa interpretaria eu citar um verso do Chico e ainda por cima ser charmoso? Com outra? E eu nem expliquei nada do telefone.

- Parabéns. Sou de Goiânia. Adoramos. Muito bonito. Sensual. Quente.

- Ah, ele me telefonou. Você é o filho? Tem uma foto aqui no meu Palm Tungsten.

É o Pé de Ferro. Meu Deus. Margareth fica olhando com aquela cara mineira desconfiada, mas não disse nada. Já está acostumada com surpresas do tipo. Ela então tomou a frente e pergunta:

- Onde achamos?

- No Jardim Botânico. O banquinho em frente ao laguinho do padre. Onde ficavam as vitórias régias. O jardineiro é o mesmo. Ele sabe.

Eu já estou cansado destas pistas, mas parece que a curiosidade feminina se atiçou. Depois de um passeio matinal pela orla, pegamos o ônibus para lá. A Lagoa está mais bonita, limpinha. Tem até os socós que originaram seu nome, Sacopenapã. Depois virou Sacopã. Agora é Rodrigo de Freitas.

Andar de ônibus no Rio é experiência ímpar. Grandes velocidades, freiadas, curvas fechadas e o melhor. Os xingamentos: “- Teu pai é corno que eu sei. Vai torcer pelo Vasco, português de merda.” Sensacional. Ainda sem respirar, chegamos. O Hipódromo da Gávea ao lado. Apostei no cavalo, mas ele não deu. Entramos e vamos direto para o lugar onde Tom Jobim sentava todas as manhãs.

- Oi, bom diiiiiiiiiia! Falei animado.

- Bom, doutor.

- Ih, nem precisa falar assim que eu não sou médico, advogado, ou candidato. Sou corredor.

Ele me olha de cima em baixo. Minhas panturrilhas ainda estão em forma, mas as da minha consorte luziam na manhã de quinta.

- Acho que a madame corre mais. Você não é o filho do Mário?

Eu nem dou-me o trabalho de perguntar como ele sabia disso. Já que eu havia percebido que o complô era universal e que até a minha parceira poderia estar metida nisso. O prêmio valia.

- Pera aí, meu celular tocou. É o meu filho. Perguntando que horas vou chegar.

Um pré-pago da Ericsson. Eu bobinho não consigo admitir que um jardineiro possa ter um telefone móvel. Caminhando entre as aléias cheias de pau-mulato, fomos conversando sobre árvores. Aprendo muitas lições. As samaúmas de Belém são maiores, disse eu. É mas o seu Tom escreveu o “Evergreen” pra essas daqui. Retrucou. Perguntei onde poderia almoçar ele falou que só conhecia o centro. E que lá não era lugar para gente de bermuda, com as pernas de fora. No finalzinho, quando fui arrumando coragem para questionar sobre o meu objeto de desejo, ele bem em frente um pau ferro, daqueles de madeira bem branca, disse:

- O dono do Chaika da Visconde, tentou comprar um. Mas ele não mereceu. Vai lá.

Voltamos céleres. Digo, o motorista do “busu”. Comentei rapidamente que todos são assim. Aproveitei para falar um pouco da minha incessante procura. Coincidência ou não, era logo em frente ao Hotel, número 321. O antigo Café Progresso. Comemos um prato qualquer e a sobremesa de morango. Época do Festival do Morango. Impressionante a extensão de sobremesas no cardápio.

- Eu gostaria de falar com o proprietário da casa.

- Ele está lá em cima. Pode subir. Não repare na bagunça.

Passei pelo restaurante. Surpreendentemente asseado. No sobre teto, um apertado escritório cheio de quinquilharias de outros tempos. De relance vi um Siemens & Halske Modelo W38, daqueles que os alemães usavam nos correios. E ele tocou! O trinado característico. Sonoro, mas sem ser estridente. Tremi. O bicho funcionava. Sabia que estava diante de um conhecedor do assunto. Como ele não conseguiu comprar o Pé de Ferro? Sendo rico, idoso e do ramo? Nem deu bola pra minha estupefação. Atendeu.

- Olá, amigo. Sei. Já chegou. Não. Não disse palavra. Só na Lapa. O Antiquário, o Scenarium. É, lá que o pessoal reúne para tomar umas biritas. Será que ele bebe? Acho que não. A barriga tá muito seca. Só se for caipirinha.

Pela última frase percebi que falavam da minha artística pessoa. Eu estou pior do que umbigo de vedete. Totalmente por fora... Ele continuou falando coisas sem sentido, mas com um grande ar de consternação. Me deu um abraço apertado e disse, sem cerimônias.

- Do lado da nega maluca, no corredor, à meia-noite. O Zé do Trombone vai te ajudar.

Desci e falei:

- Mulher, vamos dançar na Lapa. Os arcos são lindos de noite.

- Dá para ir num cinema? E que negócio é esse de Lapa? Você bem sabe que eu não sei sambar e que você depois da cirurgia não consegue dar um passinho que já está doendo.

Fiz de desentendido e rumamos para a Estação Ipanema. Passo pela igrejinha e rezo. Só Deus e todos os santos, em especial Nossa Senhora, poderiam me ajudar nesta empreitada que já estava tomando uma forma louca e atrapalhando minha viagem e o até o sólido casamento... Bem, exagero meu. Mas ao entrar no cinema, tomado de senhoras de fino trato, elegantes e todos mais velhas que nós; que já passamos dos quarenta. Um cheiro bom. O filme? “Conversando com mamãe”. Ri muito, adorei. Ela, como sempre, faz boas escolhas.

Levamos a Cláudia. Carioca. E suas amigas nos encontram lá. De dia antiquário, de noite, gafieira. Dizem que o malandro pra valer, não espalha; tem mulher e filho e tralha e tal. Não resisti e lembrei os bons tempos que eu subia o Cantagalo descalço, depois da praia, com uma nota de mil na sunga e ia bailar com a Tereza. Cadê Tereza, onde anda minha Tereza?

Demorou chegar meia-noite e os dez relógios à minha frente baterem. Até o capelinha da Ansonia -eu tenho um em casa- soou. O Zé tinha cabelos brancos prateados e penteados para trás, camisa cinza de seda dobrada, acima dos cotovelos. Uns sessenta ou mais. Difícil precisar. Foi dizendo:

- Olha, hoje não dá, porque aqui tá cheio e muita gente está querendo. Eu toco no Municipal, sábado à tarde. Depois dali eu faço uma fezinha no Jóquei. Você me empresta um e eu te falo. Falou?

Não tive chance de argumentar. Margareth chegou logo em seguida. O cheiro de loção pós-barba do Zé ainda paira no ar. Deve ser Lancaster. Lá embaixo o seu indefectível trombone de vara, faz a marcação. Pom, pó-pom. Pooooom! Delícia. “Morena de Angola que trás o chocalho amarrado na canela...” Ele protagoniza um solo logo no início dessa música.

Não posso dizer que dormi bem. Mentira. Feliz estava ela ao lado. Treinara bem e vamos ao Leme pegar seu número e o chip. Manhã de sábado. A Urca. O Morro. O bondinho. Sempre indescritível a vista que se descortina. Mas a cada ano os prédios sobem mais um pouco pra cima dos morros. E as favelas parecem virar amebas, com pseudópodes espalhados nas encostas da Zona Sul. É o Rio. Um sagüi enfeita o cenário. Não venta. Sinal de que não vai chover. A praia Vermelha. O recorte até Niterói. As travessias a nado. Tudo me lembra o velho Alencastro. Vou chorar de novo, impossível deter as emoções.

- Oi, amor. Que foi, lembrou do seu pai?

- É, olha ali. O Redentor tá tampado. Vou pedir pra ele me iluminar. Depois subo a Penha de joelhos.

Frase típica da baixada fluminense. Nasci goiano. Até os trinta agi como carioca. Depois me descobri italiano e por fim sei o que sou. Cidadão do mundo, encantado com tanta perfeição que vejo nas minhas andanças por aí. Atrás de telefones.

Lembrando do Jardim Botânico, fomos ao Centro. Quero um bacalhau. Mas na Rua Carioca está o bar Luiz. Antigo Bar Adolph em que meu pai, estudante de Direito em 42, homenzarrão de 187 cm parou na frente do Ary Barroso, pronto para quebrar tudo. Os seus alunos do Pedro II estavam possessos com a guerra e achavam que o nome do bar era em homenagem ao Hitler. Ary disse, mentira. Com um chope escuro na mão, ofereceu ao meu pai. Este, que não bebia, bebeu. Ary tirou sua gaitinha e tocou aquela musiquinha que anunciava os gols na Rádio. Apesar de ser Flamengo, ali Ary conquistou meu coração, digo; do meu pai. Com esta história virei Flamengo, o coroa continuou Bota.

Nem preciso dizer que peço de entrada os 10 bolinhos de bacalhau. E depois um delicioso Eisbein com salada de batatas e dois chopes escuros. Vou aos céus. Dou pro santo um pouquinho e saio para comprar o ingresso no Municipal. Não sem antes passar na Colombo e pedir de sobremesa uma éclair de chocolate com um quindim de camisola. As moças? Mil folhas. Na saída fotografo a mesa do Flamengo e compro doce de jaca, o único que como. E uma marmelada na lata, pra minha – ainda viva- mãe.

Prosseguindo o delírio que me tomou, compro galeria. Não tinha balcão nobre, onde sempre me sentei acompanhado dele. Lá parecia uma pequena gávea, no final ele aplaudia muito e gritava:

- Bravo! Do caralho! Bravo! Do caralho! Bravo! Do caralho!

Um dia resolvi perguntar o porquê do palavrão. Ele solenemente recitou uma prosaica explicação da origem palavra caralho, que significava gávea, pequeno balcão. E que falando desse jeito, o maestro saberia que ele estava ali e havia apreciado muitíssimo a apresentação. Era do caralho!

Vamos a um filme inquietante. De sombras e silêncios. “A Casa Vazia”. Coreano. Coisa que se assiste somente no Rio. Metade do tempo eu fiquei pensando naqueles dois dias de esconde-esconde. Eu estava sendo manipulado. Jantar sem pressa e uma peça com a Mônica Martelli. “Homens são de Marte... e é para lá que vou!” A atriz linda, alta e utilizou o mesmo vestido o tempo todo com umas 12 composições diferentes. Ali no teatro da Cândido Mendes. Uns 135 lugares, umas 150 pessoas. Uns 15 rapazes. Eu, um deles. Não me senti oprimido, mas percebi que sou coisa rara no mercado. Quem tem o seu que guarde. A mulherada está desesperada. Basta abrir uma porta, falar “com licença”, dar “bom dia” e começar uma frase com “por favor” que você já conquistou. Não se fazem mais homens como antigamente. Mas eu acho que ser educado é tão... simples!

Logo cedo vou às livrarias atrás de raridades. E uma busca rápida pela Net para achar os telefones disponíveis no mercado. Nada. Sábado é dia de feijoada. Entre o Cosme Velho e Laranjeiras, o Bondinho da Santa Tereza, o único em funcionamento. O boteco? O do Mineiro. Lá no alto do morro. Peço completa. Desrespeitando todas as regras de véspera de uma corrida, faço minha amada comer o prato, também. Entrada? Caipirinha. Como feito um animal. E lembrei-me que a audição seria as 16h00minh no Municipal. Eram 15h40minh. O motorista perguntou:

- Por que a pressa?

- Eu toco flauta agora.

- Poxa, você leva a vida assim, na flauta?

Eu nem ri da piadinha. O Zé me esperava.

Logo na abertura ouvimos Wagner, os Mestres Cantores de Nurenberg. Tenho certeza que se o Di estivesse aqui, vibraria. Na seqüência, o maestro Minczuk rege o concerto para piano número 20, em ré menor, de Mozart. Se eu fosse médico faria uma brincadeira e pediria um ré médio... E termina de maneira brilhante com a Sinfonia número 3 em mi bemol maior, OP.55 Eroica, de Beethoven. O pianista deve alcançar até uma décima, tão grandes suas mãos são, o Jean Louis. E lá no fundo, vislumbrei o Zé. Estava diferente com a casaca. Aliás, essa roupa é a dos três “m” somente o mágico, o maestro ou o motorista a vestimenta cai bem.

- Olá, filho.

- E aí? Onde está o telefone?

- Aqui. E sacou um desses tijolões antigos da Nokia e discou. 241-8513.

- Fala meu velho. Na corrida? Do lado da Ciccareli? O segurança? Perfeito.

Em resumo eu deveria conversar com o segurança particular da Daniela, depois da corrida. Sábado à noite, véspera de competição, apenas um cineminha básico. Ali no shopping Rio Sul, depois do túnel do Pasmado. Aquele que o Roberto Carlos passou de helicóptero no filme “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” em 68. Foi um dos melhores presentes de aniversário da minha vida, conhecer o Roberto lá no aeroporto me carregando no colo. E ele não tinha as manias esquisitas... O filme? “A Ilha”. Uma besteirada. Mas valeu pelo túnel.

Alongamento, café caprichado. Passamos pela Lagoa Rodrigo de Freitas, o Flamengo, a Avenida Padre Leonel de France e o túnel Dois Irmãos. Que quase ninguém sabe quais são. Demos a volta porque estava já fechada a Avenida Niemeyer. Que foi construída em 16 e tem a Gruta da Imprensa que ninguém vai lá. Esse lugar habita mistérios, já dizia o amigo coreano do papai, o Tjong Hrong Oei que junto com o Pasquale Mauro, o Carlos F. Carvalho (Hosken), e o Múcio Athayde são donos até hoje de 1/3 da Barra...

A largada é no horário. Margareth sai lá atrás. Muita gente. Paro na saída da Avenida que tem 4 km de extensão. Fotografo com o fundo da Pedra da Gávea, céu claro. Acho São Conrado uma ilha, no meio do turbilhão dos traficantes da favela e dos novos-ricos da Barra. Nublou os quatro dias, mas na hora do evento, regalou o sol. Toca o celular.

- Opa, eba, eba!

- No quilômetro 20 você pega o endereço com o sujeito. É só falar o seu número antigo de telefone. O da sua casa.

Nem deu para saber quem era. Fui incentivando os corredores e louco para chegar ao ponto demarcado. Era no Flamengo. E lá vinha a mulher com a minha mulher atrás. Disputando palmo-a-palmo o asfalto quente. Rio 40 graus.

- 245-7747!

- Olha, é o Alencastro!

Minha esposa, vi logo depois. Apesar da Cicarelli ter largado na elite, confio mais nas pernas da nobre consorte. Uma disputa acirrada. Entre tirar a foto da mãe dos meus filhos, cumprimentar a modelo e pegar o bilhetinho nas mãos do segurança que me chamou, não vacilei: fiz as três coisas ao mesmo tempo. E caí no chão.

A multidão galopando suada e eu ali. Sentado a beira do caminho. Um único endereço. Praça dos Caetés, 07 – Morro do Timbau – Bairro Maré. Só faltava essa, o lugar mais temido do Rio de Janeiro. Passar pela Linha Vermelha domingo de manhã, logo depois da Vila do João e do lado direito; a cidade Universitária, o Fundão. Um pouco antes o Cemitério Francisco Xavier onde a Tereza está enterrada. E do lado esquerdo, a feirinha do nordeste, que minha tia Do Carmo freqüentou a vida inteira.

Não sei se deixo o pessoal e vou só, ou chamo um grupo de amigos. Mas goianos, cansados de corrida, ir à Maré? Tem certas coisas que se resolve sozinho. Fui. Antes, marquei um encontro no boteco da Praça Nossa Senhora da Paz, bacalhoada.

A escola de dança foi uma surpresa. A memória viva da Dona Orosina, que trabalhou com meu pai no fim dos anos trinta e que depois fundou a maior favela do mundo. As crianças. Gente humilde. Tem certos dias que eu penso nessa gente, e acho que tudo vai dar certo.

- Onde está o telefone?

- Tá guardado. O seu Bertazzo e a Dona Eliana ganharam da Petrobrás. Não sabem o que fazer. O senhor vai comprar?

- Vou.

- É caro. Essa grana toda vai ficar pra Maré?

- Vai.

Entrei na sala e o vi. O bocal largo e curvo, nas cores preto e dourada, a manivela, as quatro ligações embaixo. Até a cordinha verde. Só não chorei porque a emoção era tanta que emudeci. E eu ando me emocionando muito ultimamente...

- Quanto é?

- O patrão deixou escrito aqui.

Olho. Era justo. Caro, mas correto. Pago sem titubear. E volto para Ipanema. Fora muito mais fácil do que eu imaginava. Coloquei dentro de uma caixa de sabão em pó. Para disfarçar. Eu e meus preconceitos. Nunca fora tratado tão bem e de maneira tão cortês. O Gomes de Sá me espera. Muito azeite –português- óbvio, e pouca cebola. Abri um champagne que trouxe da casa do Cláudio. Don Pérignon Milesimée.

A tarde passou voando. Meio tonto do “perláge” dos eventos, subi para o quarto. Margareth feliz com seu resultado fantástico na prova. Só nos restou fazer o que um casal faz quando está em alegria. Nos amamos sem dó.

Cochilo um pouco. Quando acordei já eram três da madruga. Vendo-a dormindo ao meu lado, pensei em tudo que já construí. Os filhos, a família, as corridas, os telefones. A minha vida, enfim. E então, aconteceu o improvável. O insólito. O celestial. O telefone tocou. Eu jamais ouvi som igual. Eram sinos delicados. Atendi, atônito.

- Alô?

- Como vai , filho?

- Pai?

- Não conhece mais minha voz?

- Claro que sim. Eu não sei se o senhor sabe, mas este telefone não está ligado.

- E daí? A ligação está ruim? Das outras você não percebeu que era eu... Tista...

- Quer dizer que o senhor ligou para todo mundo?

- É.

- Dá para deixar de ser monossilábico?

- A Margareth gostou do Rio? Mostrou para ela o Jardim Botânico? O Pão de Açúcar?

- Claro que sim.

- Comeu bem?

Ih, agora eu já estava falando que nem ele... Como eu não sei quanto tempo demora uma ligação do céu, eu tento concatenar um assunto com o outro, mas não acho jeito. Para falar a verdade, apenas ouvir sua voz firme e grave, já é um deleite.

- Pai, eu sinto muitas saudades suas. Aqui no Rio, ainda mais.

- É a vida, filho. E as crianças, estão fortes? Veio trocado, né? A menina é você e o rapaz é a mãe... Bom que fica equilibrado. A força com a razão. A loira e o moreno. Pode até escolher.

Não. Eu absolutamente não conseguia mais manter este papo nem por um minuto. Só queria chorar e aproveitar cada segundo daquela voz e daquele amor tão forte que nos uniu.

- Sabe por que, que o Zé só usa um tipo de camisa?

- Não, pai.

- Porque navalha não corta seda.

- Eu comprei uma Solinger.

- Eu sei.

- Pai?

- Fala meu filho.

- O senhor está satisfeito comigo?

- Como assim?

- Com a minha vida, minhas coisas. O que ando fazendo...

- Você é meu filho, sangue do meu sangue. Tudo que faz, eu gosto.

- Pai, não é isso...

- É assim mesmo.

- Pai eu te amo.

- Eu também, filho.

- Olha, trate bem seu irmão. Veja sua mãe com mais freqüência. Eduque seus filhos com o exemplo. Ame bem sua mulher. A profissão, encare-a como arte. Escreva muito. Vença umas provas, não precisa ser todas.

- Eu tento pai.

- E as mulheres, filho?

- Como, as mulheres?

- Gentil com todas.

- Eu sou.

- Pai, o senhor já vai desligar?

- Vou, tá quase.

- Obrigado.

- Por nada.

- De vez em quando...

- Me liga com Deus?

- É só fechar os olhos, filho; Ele está dentro de nós.

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JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 19/12/2007
Código do texto: T784223
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