DOS PROBLEMAS DA OPINIÃO

Dona Dorotéia era uma mulher de opinião. Aliás, de opiniões. Tanto que para cada coisa tinha a sua, já formada, sem contestações.

Quando opinava, já havia pensado bastante sobre o assunto. Não era de falar muito, mas de pensar muito. Enquanto lavava os pratos, ou varria a casa, não cantava, como suas vizinhas e conhecidas, ficava pensando sobre isso ou aquilo, formando sua idéia sobre o assunto.

O único mal era que não aceitava opiniões em contrário e tudo que entendia era definitivo.

Qualquer coisa que caísse no seu juízo ruminador seria ruminado, demoradamente, e depois que se lhe formasse uma idéia sobre o assunto – adeus, Amélia! – nunca mais esta mudaria.

Na opinião do marido Dona Dodô era simplesmente teimosa. Aliás, nunca simplesmente, por que naquela mulher, segundo Seu Almir – o marido – nada, nada neste mundo, era simples.

- Mania infeliz que tu tem de complicar tudo, Dodô!

- Complicar? Como assim, complicar? Não, meu filho, eu não complico coisa nenhuma! Você é que não entende. Eu não tenho culpa.

Os filhos se divertiam com as manias da mãe. Se divertiam agora, depois de casados. Quando adolescentes, comeram fogo e arrotaram brasas. Namoradas e namorados passavam pelo crivo implacável de dona Dodô. Se a opinião fosse ruim, adeus namoro. Além de opinião, outra característica de Dodô era a sinceridade.

- Menina, vou te dizer...

- Ai, ai, ai...

- Ai, ai, ai, nada! Esse teu namorado é um bosta. Um camarada de vinte e dois anos, que não estuda, não trabalha, vive tocando viola num bar e noutro...Hummm...Na minha opinião é um batoteiro!

- Eu amo ele, mãe! E ele não toca viola, é uma guitarra elétrica!

- Viola, guitarra...Tanto faz! É profissão de batoteiro.

- Batoteiro ou não, eu amo ele, mãe!

- Pois deixa de amar, oras! Tão simples...

- Tão simples? Não diga isso, mãe...- dizia a moça, no auge da indignação – A senhora pensa que é assim? Ama, deixa de amar?

- Olhe, menina, disso eu entendo (do que é que não entendia?). Trate de ir se desencantando, por que esse camarada vai lhe fazer uma boa qualquer dia!

A moça sustentou o olhar, mas no fundo do coração temeu pelo seu romance.

Profética, Dona Dodô não errava nunca. Um dia o tal foi visto recebendo dinheiro de umas prostitutas do bairro. Debalde explicou-se. Dona Dodô tinha opinião formada: ele era gigolô! Diante de uma afirmação séria destas, e das informações das investigações decorrentes (Dodô tinha uma vastíssima rede informativa entre os vizinhos. Aliás não tinha vizinhos e sim correligionários), a menina teve que render-se. Acabou o namoro.

Sobre religião, Dodô também tinha sua opinião: religião era a católica – embora fosse não praticante – e comunista era o demônio. E ponto final.

Igual opinião tinha dos umbandistas e espíritas em geral. Classificava-os a todos de macumbeiros – fosse qual fosse sua “linha” – e desocupados. Gente imbecil que não tinha mais o que fazer senão aquelas presepadas! As vizinhas simpatizantes do ocultismo encontravam em Dodô um opositor ferrenho e crítico. Evitavam emitir suas preferências na sua frente. Se quisessem continuar a ser correligionárias! O apoio de Dodô era inestimável. Ela não perdoava inimigos.

Depois de alguns anos – com os três filhos já casados e o marido aposentado – Dodô opinou que deviam mudar de casa. Aquela era grande demais, dava muito trabalho. Na esquina desocupara uma casa ideal. Dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Um grande quintal e uma excelente varanda. Opinião dada, ordem obedecida. Mudaram-se em menos de três dias.

Dodô estava satisfeita com a casa. Mudaram-se na segunda feira, e até a sexta nada havia que pudesse desgostá-la.

Foi quando se deu o problema: sendo casa de esquina, as duas ruas cruzavam-se e era ponto de “despachos” de um terreiro de umbanda das proximidades.

Como era distante algumas quadras, o barulho dos atabaques não chegava a incomodar. Não deixava de, ao ouvir o som do batuque, fazer um muxoxo de desagrado: gente idiota, desocupada! Mas como era longe, procurava ignorar.

Acontece que, naquele próprio dia, havia tido um trabalho imenso no terreiro. Um caso de amor a se resolver. O pai-de-santo, sujeito responsável, pessoalmente cuidara dos detalhes, fora ele mesmo fazer o despacho para a entidade importante - infalível segundo ele – que estava cuidando dos interesses da filha de um certo político influente.

Trabalhos terminados foram fazer o despacho, bem na esquina da casa de dona Dodô.

Foi uma tremenda confusão:

- O que? – disse dona Dodô, indignada até a alma – Que porcariada é essa que vocês estão colocando na minha porta?

- Calma, dona! – respondeu uma filha-de-santo do terreiro – Que Pai Alfredo está concentrado!

- Mas, o que? Ele que vá se concentrar na casa da peste! Saiam já da minha calçada! Era só o que faltava: eu, me matando para manter a casa limpa e vocês jogando essas porqueiras perto da minha casa! – e assim dizendo, de vassoura em punho, tratou de varrer o despacho para o meio da rua.

Os umbandistas se desesperaram! Que falta de respeito com a entidade! Que mulher louca!

- A senhora vai se desgraçar! – ameaçava o tal do Pai Alfredo, com uma voz esganiçada, praticamente desmaiado nos braços do ajudante. Era um sujeito delicado, muito suspeito aos olhos de Dodô - O Tranca Rua vai lhe desgraçar!

- Ele que vá trancar a porta dos infernos, esse corno! – Dodô estava fula, não suportava ameaças – Aqui é que não vão botar essas porcarias! Raspem-se daqui!

Foram-se os contendores, cada um para o seu lado. Pai Alfredo, arreliadíssimo com a ofensa pessoal e com a falta de respeito à entidade. Dodô sinceramente puta da vida com desplante. Duelo de titãs!

Pai Alfredo não era de desistir de uma pendenga. Dodô muito menos!

Além do mais o macumbeiro tinha que dar a “obrigação” da entidade! Senão o “serviço” ia por águas a baixo, um prejuizão! O pai da indigitada moça queria que a filha ficasse satisfeita, tinha concorrido para várias reformas e festas do terreiro. Não poupara cobres, cobrava resultados.

Consultada, a entidade disse que recebia em qualquer encruzilhada – talvez com medo de dona Dodô e sua vassoura – mas o pai-de-santo, também ele sinceramente puto, teimou. A encruzilhada tinha que ser aquela! Vamos ver quem pode mais!

Talvez por instinto, dona Dodô sentiu que a pendenga não acabava ali. Conhecia bem aquela raça! Iam teimar, insistir! – pensava, ruminava – Iam querer fazer-lhe uma desfeita!

- Mas, Dodô – dizia-lhe o marido, temeroso – não será melhor deixar? Depois a gente manda lavar a calçada com cal, com água sanitária, até com ácido se você quiser!

- Deixe de ser frouxo, homem! Se a gente permite uma vez, eles fazem logo uma casa de terçol! Nunca mais vamos ter sossego.

- Mas, Dodô, essa gente é perigosa!

- Deixe de ser frouxo! – disse ela com desprezo – que estória é essa de perigosa? Uns desocupados, isso sim! Um fresco e um monte de futriqueiras! Eles que venham – ameaçava, de vassoura em punho – Eles que se atrevam!

O marido balançava a cabeça, desalentado. Dodô não tinha jeito!

Semanas se passaram até que novo movimento se desse. Os vizinhos apostavam. Dodô tinha a preferência.

Alertada por um vizinho do terreiro – sabedor da coisa e felicíssimo por alguém implicar com aquela barulheira dos infernos, que não o deixava conciliar o sono – Dodô ficou sabendo que novo despacho ia ser realizado, bem ali na sua porta. O marido foi passar a noite na casa do filho mais velho. Cardíaco, queria poupar-se. A mulher não tinha jeito, e ele podia até morrer.

Havendo ruminado por horas, acabou por achar uma solução: Botou água para ferver no caldeirão de tingir roupas, armou uma bem armada arataca sobre o muro e esperou tranqüila a noite chegar.

Resumindo, deu um banho de água quente nos macumbeiros e aproveitou para lavar a calçada.

A polícia foi chamada. Pai Alfredo seguira para o Pronto-Socorro com queimaduras diversas.

Autuada, levada presa, Dodô esculhambava com Deus e o mundo, sobretudo com o delegado e a polícia em geral. Era um absurdo! Ela, uma mulher direita, ali presa? Fossem prender aqueles desordeiros, aqueles macumbeiros dos infernos!

Foi o filho mais novo que chegou com a notícia. Deu-a com jeito, para não assustar o pai:

- Pai, tem uma notícia amargosa e é pra gente resolver. Não se assuste!

- Que foi? – disse o pai morto de susto com aquele “não se assuste”, dito com ar de tragédia.

- Mãe foi presa. Jogou água quente nos macumbeiros.

- Ai, Meu Deus!

Ao chegar na delegacia, encontraram um clima ameno. Dodô conversava com o delegado, que a escutava abismado. Podiam ficar tranqüilos. Dodô havia feito mais um correligionário.