Júri familiar

Não tinha mais como negar, eu era culpado. Restava-me somente aceitar a pena. Calei-me e aguardei por alguns minutos o que todos na sala tinham para falar. Não interrompi ninguém. Meus argumentos eram nulos. Eles já haviam decidido me condenar, independente do que eu tivesse para falar ou os motivos que me levaram a cometer “atos tão repulsivos” segundo eles.

Uma vergonha! - disse meu pai, transtornado - não sei onde foi que eu errei contigo. Te criei do mesmo jeito que criei seu irmão, mas você… Só pode ter sido sua mãe.

Minha mãe me olhou com decepção, em seguida olhou para todos que estavam ali reunidos, umas quatro pessoas, ela e eu. E como se aceitasse sua culpa, como se concordasse com as acusações de meu pai, apenas chorou. Baixou a cabeça e chorou. Dessa vez não foi um choro desesperador, como o que ela revelou quando eu fui descoberto. Era um choro de aceitação da sua parcela de culpa em tudo aquilo.

E ele não diz nada, esse sem vergonha! - falou meu irmão exaltado.

Rídiculo. Por inúmeras vezes durante os quase 50 minutos daquela reunião eu tentei falar e todos pediam que eu me calasse, falavam no mesmo tom “não tem justificativa”. Quando finalmente me calei. Ele me diz uma coisa dessas. Meu irmão, um ano mais velho que eu, é casado e tem dois filhos, que disse preferir vê-los mortos a ter que vê-los fazer… Ou ser como eu. E agora, ele se irrita por eu estar em silêncio.

Olho-o com ódio. Sinto um desejo impetuoso de xingá-lo e dizer para todos quem ele realmente é. Não sei como, mas consigo me controlar. Talvez por experimentar o sabor do julgamento, talvez por ter sobre mim todas as acusações e repulsas de meu pai, minha mãe, meu irmão e minhas duas irmãs… Não, elas não.

Coloquei todos no mesmo nível. Porém, agora que me calei é que percebo que nenhuma das duas me acusou de nada. Quando eu gritei, tentando ter voz para contar a minha versao dos fatos, Lígia também gritava, mas agora que consigo filtrar todos os discursos é que me lembro que seu grito era por calma.

Não precisa disso, gente! - ela falava, tentando acalmar os ânimos - deixa ele falar.

Não deixaram. O pouco que eu falei foi atropelando a fala de minha mãe, ora a fala de meu pai, ora a fala de meu irmão. Sei, no entanto, que ninguém me escutou, por isso que, agora, estou calado, ouvindo as acusações e repulsas do meu irmão. Esse mesmo, que de acordo com meu pai, foi criado com a mesma educação que eu e não o decepcionou como fiz.

PLAF! Senti meu rosto queimar, invadido por uma chama que eu não sabia de onde tinha vindo.

Nãââo. Violência, não. - minha mãe interviu, ficando entre mim e meu irmão.

Somente nesse momento é que percebi que a chama em meu rosto era resultado de um tapa na cara. Não me restava mais nada. Talvez eu ainda quisesse ficar. Eles eram minha família. Era onde eu me sentia seguro. Por muito tempo senti que eu estava decepcionando meu pai, minha mãe e meus irmãos.

Tentei sair daquela situação. Busquei coragem, mas não a encontrei. Olhei o rosto de Lígia e de Luana, eu as amava. Ficar longe delas era a última coisa que eu queria. Eu mereci o tapa! Eu mereci os gritos! Eu os decepcionei! Comecei a repetir essas frases em minha cabeça, tentando me convencer a ficar.

Minha mãe abraçou o meu irmão. Pensei que ela estava me protegendo. Ela se importava comigo, pensei de repente.

Se acalme, meu filho, não vale a pena sujar suas mãos com gente desse tipo. - disse acalentando o homem que me agrediu.

A dor do tapa não foi tão intensa e tão destrutiva como as palavras de minha mãe. Para ela, eu não seria digno nem da agressão da família. Algo dentro de mim se rompeu, aquelas palavras rasgaram minha alma de tal maneira que tenho certeza que nunca mais serei inteiro. Decidi então que não ficaria mais naquela casa.

Senti algo me puxar com agressividade, era meu pai. Ele agarrou em um de meus braços e me puxou até a porta da frente da casa. Em frente a nossa casa, tinha três degraus, pois nossa casa foi construída acima do nível da rua. Ele não me permitiu descer os degraus. Empurrou-me da porta mesmo, fazendo-me cair com o rosto na rua.

Aqui você não mora mais, seu viado desgraçado. - disse e fechou a porta com todos dentro de casa.

Levantei meu rosto do asfalto, gotas de sangue escorriam pela minha boca. Ouvi ainda gritos femininos vindo de dentro de casa. Eram Lígia e Luana. Porém, ninguém saiu para me socorrer. Em torno de mim, um pequeno grupo de pessoas se aglomerou. Uns horrorizados com o que viam, outros rindo e cochichando.

Eu quis me levantar e sair correndo. Não consegui. Alguém pegou pelo meu braço, era diferente de como meu pai havia feito momentos antes. Olhei atordoado, era uma mulher. Levou-me para sua casa. No outro dia, pediu que eu procurasse um lugar para morar.

Eu tinha 19 anos. Nenhuma formação e nunca tinha trabalhado.

Agora, estou indo atender mais um cliente. Não sou mais o menino magro e indefeso que eu era 10 anos antes. Dentro de mim, a mágoa ainda permanece a mesma, talvez pior, pois eu a alimentei durante todos esses anos. Meus longos cabelos e seios fartos, comprados com o dinheiro da prostituição, assim como tudo o que tenho. Um apartamento modesto, alugado, alguns móveis… Nada muito extravagante.

Por mais de cinco anos vivi na rua. Até que coloquei meus peitos e eles me trouxeram uma nova clientela. Homens que pagam mais pelo sigilo que pelo sexo. O cliente que irei atender hoje é num hotel. Tudo certo, irei entrar, conferir se o corredor está vazio e só então bato na porta. Depois das duas horas de prazer que ele terá, será o mesmo homem de sempre. Pai e defensor dos bons costumes.

Três batidas e ele abriu a porta. Quis me beijar, estava sedento. Pedi a ele um vinho, ele não me negou. E antes que me beijasse, o líquido vermelho escorreu pelo seu corpo, lavando minha alma e dando alento para o meu coração. Eu perfurei seu pescoço com o abridor de vinho. Uma… Duas… Várias vezes. Até ele não mais lutar pela sua vida.

Peguei seu celular com todas as mensagens que havíamos trocados e joguei num bueiro próximo do hotel.

Viado desgraçado! - disse enquanto jogava seu celular no bueiro.

Eu só queria ver o rosto de minha mãe quando ela recebesse a notícia de que perdeu seu filho amado!

Nilson Rutizat
Enviado por Nilson Rutizat em 15/08/2023
Reeditado em 22/08/2023
Código do texto: T7862350
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