Gente Louca - Tudo OK

Cotidiano – Tudo OK

A penumbra da noite não tardaria a escurecer ainda mais o céu que mostrava nuvens carregadas aproximando-se pelo leste, era o final de uma tarde de verão. O homem que dirigia o Audi A4 preto demonstrava que pretendia chegar em casa antes que a chuva desabasse sobre a cidade, por isso, na rodovia Ayrton Senna ultrapassava pela esquerda, pela direita, pelo meio, e não temia tomar multa ao andar pelo acostamento. Tomou a faixa da esquerda, grudou na traseira do Uno Mille, acionou as luzes altas dos faróis mais de dez vezes demonstrando sua intenção de ultrapassar, mas o motorista do Mille não se incomodou com os apelos do apressadinho, afinal mantinha a velocidade máxima permitida para a faixa e não precisava dar passagem a ninguém. O Audi agora estava a centímetros da traseira do Mille, o risco de um choque era iminente. Ambos os veículos eram ocupados por casais, e ambas as esposas tentavam sem sucesso apelar para o bom senso dos maridos e evitar um desastre, ambos os maridos estavam surdos e cegos diante de suas intransigências. O motorista do Audi cortou pela direita e logo depois de ultrapassar o Mille baixou o vidro e enfiou o braço para fora, fechou a mão esquerda deixando somente o dedo médio à mostra, viu pelo retrovisor quando o motorista do Uno revidou fazendo com sua mão esquerda o característico OK. A estrada havia acabado, os dois estavam na Marginal Tietê, o Audi sumiu na curva ao mesmo tempo em que o motorista do Uno falava em voz alta para a sua mulher ouvir todos os palavrões que havia aprendido ao longo de seus quase 50 anos de vida. Foi repreendido mais uma vez;

- Pare com esses palavrões e olhe para frente, o trânsito está parado.

Coincidentemente os dois carros ficaram lado a lado, inertes, com os motores desligados. Um grande congestionamento havia se formado. A chuva desabava abundantemente e fazia o Rio Tietê encher rapidamente. De um lado, o rio, de outro, os barracos de uma favela, na pista, carros, caminhões, ônibus e motos ocupando todos os espaços. O nível do rio subia assustadoramente apesar da chuva ter parado, certamente estava chovendo muito na nascente e em seus afluentes. Aos poucos os motoristas e passageiros dos veículos foram se juntando e assustados começaram trocar palavras de indignação, e num piscar de olhos eram unânimes em responsabilizar as autoridades pelo absurdo que estava acontecendo. Todos apontavam para uma placa colocada pelo governo do estado anunciando ironicamente que as enchentes haviam acabado há 3 anos. 3 ANOS SEM ENCHENTES!

Alguns garotos moradores da favela se aproveitavam da situação para vender bolachas, água, cigarros e refrigerantes. Alguns iam além e assaltavam os motoristas mais desgarrados, os que não se animavam a participar da grande comunidade de Prejudicados pela Enchente que informalmente havia se formado.

As horas passavam, as rádios anunciavam que era uma das maiores enchentes de todos os tempos, a solidariedade se multiplicava. Quem tinha telefone celular emprestava para os que não tinham, todos queriam ligar para as famílias, os motoristas de caminhão acalmavam os mais assustados, principalmente mulheres e crianças, dizendo que se o rio subisse mais eles deixariam que todos se acomodassem nas carrocerias das jamantas, bem mais alta do que o teto dos automóveis. Os motoristas de ônibus rodoviários foram convencidos a deixar que mulheres e crianças utilizassem os banheiros. Os problemas iam sendo solucionados à medida que apareciam. Na comunidade recém formada parecia não haver palmeirenses ou corinthianos, católicos ou protestantes, governistas ou oposição, pretos ou brancos, brasileiros ou estrangeiros, jovens ou velhos, o que imperava era a solidariedade. Sem saber, misturados entre os outros, o motorista do Audi e do Uno conversavam animadamente enquanto suas esposas foram juntas até um dos toaletes dos ônibus.

Alguém aqui é dentista?, - perguntava uma mulher aparentando ter por volta de quarenta anos. Minha filha está desesperada de dor, ela tratou um canal hoje à tarde e está tudo inchado. Dentre as mais de duzentas pessoas da comunidade, por sorte havia dois dentistas que logo se prontificaram a examinar a garota, com instrumentos improvisados abriram a oclusão do canal e a dor passou rapidamente. Por volta das duas da madrugada um homem anunciava que sua esposa grávida estava para dar à luz. Um policial militar à paisana, também vítima da enchente, entrou em contato com o Copom pedindo para que um helicóptero viesse socorrer a parturiente, mas não havia espaço e condições para o pouso. Houve ainda a tentativa do corpo de bombeiros buscar a futura mãe com um bote de borracha, mas isso não foi possível também. A solução foi levar a mulher até uma ambulância vazia que fazia parte do congestionamento, não havia nenhum médico no grupo, mas duas mulheres se prontificaram a agir como parteiras, ambas tinham feito curso de primeiros socorros. O policial também ajudou e por volta das 3 da manhã a comunidade de vítimas de enchentes ganhava mais dois membros; um casal de gêmeos.

A madrugada foi avançando e o sono acabou vencendo a maioria dos motoristas e passageiros dos carros, todos tentavam se ajeitar para cochilar. Pouco depois das 8 os veículos começaram a se movimentar, o rio havia baixado e as pistas estavam sendo liberadas. Ninguém se deu ao trabalho de se despedir. Em meio a lama o motorista do Audi irritou-se com o motorista do Uno porque ele ia devagar demais. O Uno foi ultrapassado pelo Audi que fez com que a lama sujasse toda a sua lateral. O motorista o Uno tirou a mão para fora e gesticulou com o dedo médio, o motorista do Audi revidou fazendo OK com a mão esquerda. Tudo estava voltando ao normal na cidade, estava tudo OK.

Laerte Russini
Enviado por Laerte Russini em 24/12/2007
Reeditado em 15/02/2009
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