Adultescer

Desfaço a mala

Caem algumas meias de lã pelo chão. Não estou mais em Nova Iorque e não há necessidade delas neste inverno de Salvador. Meias são aconchego, porém preciso anular essa necessidade de conforto. Agora, morando sozinha, tenho de ser mais prática, seca e dinâmica. Fernando sempre elogiou essas qualidades. A gente cresce e, para virar adulto, é preciso tornar-se paradigmática, gerenciar a vida, tomar providências de forma rápida e eficaz. Nos três meses em Nova Iorque, Juliana não me deixava fazer quase nada em casa. “Relaxa, aqui você está de férias”. Férias de Fernando, inclusive, após dez anos de casamento. Aliás, separei-me dele, mas não das perguntas idiotas, “separou por quê”, como se tudo precisasse de uma explicação. Dez anos são explicação suficientes às vezes. Se bem que, no meu caso, esses discursos descolados sempre foram para impressionar os outros. Na vida fui mesmo uma criança mimada, protegida por aqueles que resolviam os problemas. Voltei de Nova Iorque querendo ser gente grande, vestir-me de adulta. E vestir-me de adulta é comprar mantimentos, administrar a conta do supermercado para caber no orçamento apertado agora sem a renda de Fernando, resolver questões do condomínio, negociar contas em atraso. Não posso correr para a casa da minha mãe ou para o sobrado dos meus avós. Nenhum deles está mais aqui. Vestir-me de adulta é olhar no espelho e reconhecer minhas fragilidades. É também olhar no espelho a sinuosa cicatriz da queimadura da infância, do colo até o púbis. Acenderam a churrasqueira com a garrafa de álcool. Não tive tempo de pular pra trás. Nunca pude desvesti-la. É preciso tomar decisões difíceis, dizer não, dizer sim, dizer não quero e sustentar tudo isso mesmo se depois, por alguma razão, for preciso recuar, repensar e mudar. Será que darei conta?

Desfaço a mala.

Alguns sapatos já não me servirão mais. Já não fazem parte do meu estilo. A vida que tenho agora pede menos. Descarto alguns pares. Escolho outros mais leves, mais confortáveis. Por onde quero andar? Essa pergunta fica remoendo, remoendo. Penso nisso há alguns dias.

Os vestidos longos, as blusas de paetês, as peças de renda e muito brilho já não casam com quem sou. A colunista social já não existe. Ficaram para trás aqueles jantares cheios de glamour, de regras de etiqueta, os perfumes caros, com autoridades, celebridades e pessoas desconhecidas, quando eu desfilava meu sorriso carismático e vazio. Abro meu completíssimo estojo de maquiagem. Escolho uma base com protetor solar e um batom discreto.

Tantas coisas comprei em viagens só por comprar. Olho as muitas peças repetidas já postas no armário. Parecem conversar comigo, só não entendo o que dizem.

Desfaço a vida, essa imensa bagagem de coisas úteis e inúteis.

Reflito sobre a mala já vazia, as roupas que ficam espalhadas sobre a cama, outras, sobre o chão. As roupas espelham minha história. Aquele vestido ali canta uma música de Chico Buarque, aquela blusa faz coro num forró com Gilberto Gil. Aquela calça justa declama poesias de Neruda, e os botões do vestido vermelho entoam Por Quien Merece Amor, do cubano Silvio Rodriguez.

Saio rapidamente do quarto e bato a porta. Deixo as roupas lá dentro, mortas, inúteis, imóveis, pálidas.

Apanho o chapéu, o chinelo e saio de casa.

Não sei o que fazer com as roupas, com as lembranças, com as certezas. Meus passos são indecisos. Sinto um pesar, falta-me o ar, sobram pensamentos e sentimentos confusos.

As diversas formas de amar se entrelaçam num emaranhado de sinais sem sentido.

O vento sopra suave na orla, o dia se despede.

Deixo o vento desalinhar os cabelos e as emoções.

Amanhã terei mais certezas, serei mais forte.

Amanhã eu fico adulta.