O Parque

(Passou na catraca muito devagar. A sala de espera do sobrado é decorada com uma imagem de uma flor de lótus. Há uma poltrona violeta e uma mesinha de vidro. A recepcionista deu-lhe um sorriso profissional e discreto. Anotou seu nome e endereço. Serviu-lhe um café e agendou a próxima visita.)

Passou na catraca. Havia até um pouco de medo. Havia ansiedade, um não saber como se comportar, o que eram aqueles jogos nas barraquinhas? Ela entrava naquele parque com os olhos de uma criança que nunca viu um mundo com essas ferramentas, como um universo completamente novo, com prazer e curiosidade assustada. Parou no pipoqueiro. Com sal ou com açúcar? Não sei, respondeu sabendo que deveria saber, sabendo que seria rotulada de boba. É claro que todos sabem qual a opção de sabor para sua pipoca. Mas ela não sabia. Sabia do sal e do açúcar da vida e o gosto de ambos era amargo. Preferiu doce, arrependeu-se, arrependeu-se de se arrepender e já tinha passado sua vez. Saiu com a pipoca doce, “a fila anda, minha filha”, disse-lhe o pipoqueiro ou alguém atrás dela. Dá mais alguns passos insegura, olhando o burburinho de crianças que vão e vêm. Muito barulho, muita gente no mesmo lugar, muitas informações e alternativas. O que ela veio fazer ali mesmo? Ainda é uma criança? Ou adolescente? Adulto com certeza não. Recorda, neste momento, um gesto carinhoso do avô, recorda rapidamente um riacho no fundo do quintal, uma ponte, um rio e uma espécie de trincheira. O rio corria sobre as pedras, lavava seus pés, suas mãos, sua alma. Um barulhinho bom. Recorda cenas soltas de sua infância. Sente-se perdida na multidão. Volta ao passado, retorna ao presente e lembra da pipoca na mão. Chega no carrossel. Encosta no caixa, compra o bilhete e observa os outros já animados na fila. “Vai começar, vai começar”. O funcionário agita a galera. “Venham! vai começar!” Volta à infância. Passa uma criança, sobe no cavalinho, “segure-se firme”, passa outro, sobe no cavalinho, sorri, passa outro, sobe no cavalinho, acena para o pai lá fora. “Vai começar! Foi!” O carrossel gira, inicialmente bem devagar e aos poucos vai acelerando e gira, gira mais rápido agora, a cada volta passa pelos familiares que estão debruçados na grade, e gira, e dá uma volta inteira e gira novamente e o cavalinho ganha vida, já não olha pro lado, tornou-se parte do brinquedo, tornou-se peça do carrossel, já não se identifica sozinha no mundo, é um instrumento, um pedaço de alguma coisa, um elemento dentro da fórmula vida. “Ei… acorda! Tá dormindo, menina?”

Desce meio tonta. Já não sabe qual experiência quer ter agora. Não sabe o que lhe agrada. De novo? Extremamente contida, não consegue ouvir sua própria voz, seu próprio querer. E ainda sente o rodar do carrossel no seu estômago, em sua cabeça, sente-se enjoada, embrulhada em papel, sem laço de fita. Vai seguindo e para na barraca do tiro ao alvo. Aqui, sim, terei foco, aqui vou me identificar. Vai tomar prumo, vai se ajustar. Compra o bilhete e espera na fila. Ali era uma jovem em pleno crescimento, com planos definidos, com carreira escolhida, aprovada no vestibular. Recebe a arma e mira no alvo uma, duas, três vezes. Aperta o gatilho. Bum! Boa mira, mas não foi no alvo. Tem mais duas tentativas. Respira fundo, prende a respiração e olha na ponta da carabina. Dispara o dardo e… acerta o alvo! anima-se! Ainda tem uma oportunidade, mas já não quer arriscar e tirar o gosto do prazer da boca. Perdeu a pipoca, deve ter sido no carrossel, ninguém consegue andar no carrossel e segurar a pipoca. O que importa? Agora sim. Vai na montanha-russa pela primeira vez na vida. Mais segura e decidida, sabendo o que quer. E compra o bilhete, espera sua vez e sobe. Vai se soltando, fruindo a subida, tomada pela emoção, louca emoção de ver o mundo do alto, inatingível, amorosa, onipotente e sábia, em plena força e vigor físico e … de repente… a vertigem, o vazio primeiro no estômago e depois no corpo inteiro, o mundo desabando sem peso, e ela grita, e sorri, e grita nervosa, e gargalha feliz, os sentimentos se misturam e o mundo se mistura e ela já não sente as mãos, fecha os olhos, porque já não pode ver tanta loucura, tanta velocidade, tanta emoção, que é isso por que estou passando? Eu escolhi estar aqui? Isso é a vida? Isso é amor? Jesus! me salva. Ela ouve outros gritos, outras vozes de alegria, de espanto e de medo. Não está sozinha. Percebe que está girando mais devagar, abre os olhos e vê um céu azul e as pessoas sorrindo na fila à espera de viver a mesma experiência. Será que não disseram a elas que a vida era assim?

Pisa no chão e sente-se inexplicavelmente mais viva. Passa as mãos no rosto, nos braços, no cabelo. Segue meio sem rumo novamente no parque imenso, maior do que quando entrou nele. Chega no bate-bate. Aqui é diferente. Pés no chão. Eu dirijo minha vida, muito mais seguro. Vou escolher esse brinquedo agora. Senta e segura firme no volante. Avança e esbarra no primeiro, manobra e já bate no segundo, todos riem, ela se encolhe, como não sei conduzir uma bobagem dessa, esse prazer sádico de provocar acidentes? Continua tentando, batendo, desviando, batendo, não se diverte, não se entrega ao propósito, quer chegar no final logo, quer que o tempo passe, quer se livrar desse desconforto de ser atingida, quer não esbarrar em ninguém, quer evitar conflitos, quer mesmo o quê? Sai do carro com as perguntas a deixando mais tonta do que a montanha-russa. Sobre a vida ela não pensa. Ela fecha os olhos um instante. Um mergulho em sua infância, um respiro na vida adulta. E surge à sua frente um vendedor de algodão doce! Uma nuvem de doçura, uma lembrança da madrinha, um carinho para o paladar. A roda gigante a atrai. Com o algodão doce e uma coragem infinita experimenta a roda gigante, a máquina ligada e ela girando, subindo, girando, um fio de algodão doce sobe levado pelo vento, seus olhos o seguem, a nuvem e o algodão se misturam. As nuvens… a vida… o vento…. o algodão doce. O que será tudo isso?

E agora o silêncio gelado, moribundo. Entra na casa de espelhos. Sua imagem repetida, repetida, repetida e revista sob ângulos tão diversos causa-lhe espanto, medo, novidade, perspectivas curiosas de si mesma, sente uma solene ternura por essa personagem que vê no fundo dos espelhos. Não, naquele lugar ela não quer batom ou botox ou base ou cílios postiços. Não, ela não quer máscaras, tratamentos rejuvenescedores, cremes antissinais, anti-idade. Ela quer se ver inteira, ela quer ver sua alma no espelho, sem fantasias, sem disfarces. Ela precisa olhar para essa imagem, nela é que ela se renova, rejuvenesce. Olha para as infinitas imagens de si mesma e em cada uma vê um brinquedo do parque, a experiência de medo-dor-prazer-alegria-êxtase, seu compromisso de paz no qual se sente elemento a mais dentro da fórmula vida. “Ei… acorda! Tá dormindo, menina?”

(Até a próxima. Traga outro sonho na semana que vem, a sessão rende, disse-lhe a terapeuta.)