O Vestido

Olho a tábua de passar na área de serviço. O antigo ferro elétrico, comprado quando o bebê nasceu. Sobre a cesta de roupas o ousado vestido colorido que acentua tua cintura e mostra a curva do teu joelho. Interrogo o tecido por alguns momentos, por um tempo, por alguns anos. Havia tua presença. Você ainda andava por aqui. Ligo o ferro na tomada e verifico seu calor, distraio-me, quase queimo a ponta dos dedos.

Pego o vestido e estendo-o na tábua, carinhosamente ajusto as dobras, lentamente passo as mãos por sobre as costas, e sobre as curvas que cobriam tua cintura, teus quadris. Viro o vestido e cuidadosamente contemplo teus seios. Desato os nós das alças e teus ombros surgem, teu colo me lembra a forma como você acalentava nosso bebê. Sempre passei os teus vestidos, mas você nunca esteve dentro deles. Este aqui foi único que você não levou. Subo o fecho eclair, meu filho é quem brinca: pelo amor de deus, fale zíper. Vou até o quarto, penduro o vestido no teu lado do armário. Ele está vazio. Apenas um chapéu e uma echarpe. Teus últimos vestígios. Olho em volta e sinto alívio. Volto a ouvir nossos gritos, nossa indiferença e os ecos do que não foi dito, da minha doação jamais reconhecida, tudo que invisivelmente lavei, passei. Ok, o vestido vermelho me excitou, me seduziu, me encantou. Hoje ele é apenas o revés daquele amor, uma lembrança amarga . Um vestido esquecido. O sol se põe. Coloco uma cadeira na varanda. Lembro que estou livre e abro uma cerveja.