Ela era uma menina

Sentiu um pouco de tontura, um ligeiro mal-estar. O corpo jovem ainda não sabia discernir o que aquela sensação podia representar. Ainda não se adaptara à maternidade, com a chegada do primogênito. Ela ainda não conhecia seu corpo. Mas estranhou a sonolência, a fome impaciente e o aumento do peso. Quase não conseguia atender aos cuidados com o bebê que lhe chamava a todo instante. Alguns dias mais e resolveu procurar o médico. Os exames de laboratório deram positivo, o que lhe trouxe uma alegria insondável. Outro bebê! Os dois caminharão juntos na vida, nunca estarão sós.

Hoje a mãe se lembra da infância de seu filho e de sua filha. Como foi rápido o tempo, quase trinta anos. Um relâmpago, um raio de sol, uma gota de orvalho que cai. E ponto, passou. No passado não há vírgulas, ponto e vírgulas, interrogações. No máximo uma exclamação e ponto final. Depois já é presente. A mãe olha para aquela época, quando a infância deles era quase uma continuação da dela. Uma mãe ainda menina, cheia de sonhos, que salta de nuvem em nuvem, faz castelinhos de areia na praia. Vem o vento e a maré. Bum! Derrubam o castelo e as risadas dobram. O que vocês acham de a gente cavar um buraco na areia e se enterrar?

Outra brincadeira, outra onda que chega e nos lava, nos purifica, nos renova, Eu e eles. Mudamos do apartamento para uma casa. O jardim, o quintal. Amiguinhos, primos, vizinhos. E mais um irmãozinho. Praia no final de semana, piscina do clube, férias nas casas das avós, ambas no interior, cada uma com sua magia e seu encanto próprios.

A primeira separação foi para ir à escola. Primeira partida no coração da mãe. Como deixar no portão do colégio a pequenina que chora querendo e lhe estende os bracinhos? O coração queria ficar lá, e o dia de trabalho lhe chamava. Mas o irmãozinho ficou com Lílian. Ele a protegerá, “Vem, Ninha, eu fico com você”. E a mãe pensava que se acostumaria com as partidas. Doce engano.

Ela era morena, com olhos de um castanho profundo e cabelos encaracolados, difíceis de pentear. Sempre teve gênio forte. Não levava desaforo para casa. Levava queixas dos professores por reagir, não calar-se, por ser altiva já aos seis ou sete anos. Queria ser veterinária! Amava tanto os bichos que perturbou, perturbou, até que ganhou uma cadela aos nove, a pretinha Mila. Mas acabou escolhendo outra carreira, e foi fazer Oceanografia. Sua determinação a levou às melhores notas e à indicação para o Mestrado. Depois decidiu seguir por outros caminhos e estudou para concursos por cinco anos até passar no da Polícia Rodoviária Federal.

O tempo voa.

Ontem a mãe levou ao aeroporto Lílian, que seguia para a Academia de Polícia em Santa Catarina. No saguão, viu uma moça de vinte e poucos anos com uma criancinha, de laço no cabelo, que dormia em seus braços em um estado de segurança e conforto. A mãe viu-se naquela cena, ela e Lílian. Olhou para sua menina ao seu lado, hoje tão segura, tão madura, uma mulher. Seguiram até o portão de embarque. A filha olha sério para as lágrimas da mãe e resmunga, “deixa de bobagens". E pensa: porque ela chora? Só a maternidade explica essas incongruências emocionais, essas lágrimas bestas. Despediram-se.

Para a mãe, a filha é uma super-heroína.

Zeni Oliveira
Enviado por Zeni Oliveira em 29/11/2023
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