A repartição igualitária da miséria

Era um dia de folga e não havia nenhum compromisso para a banda Crop Circles, formada por Mila Cox e Zími.

Estavam de folga também de suas atividades como copywriters, que os sustentavam.

Não viviam da música, mas viviam para ela.

Mila Cox bateu à porta de Silvano, e lá estavam ele e Zími fumando maconha, tomando rum e ouvindo Circle Jerks.

Silvano estava olhando pela janela quando ela entrou. Virou-se da vista que tinha para a rua e comentou:

"É preciso que haja uma nova civilização. Esse imenso contingente que vaga aí fora é como um rebanho de ovelhas zumbis, que destroem umas às outras por nada, além da necessidade de canalizar a frustração que sentem por serem tão infelizes com suas vidas mortas. Suas vidas são vagas existências frias, quase ocultas em meio ao gado. Muitos tem e carregam um único livro, que nunca leram, mas que consideram sagrado. Se o povo lesse mesmo a bíblia, não haveria pastores milionários sugando dinheiro dos pobres."

Ele usava uma regata amarela dos Bad Brains e segurava um copo grande de rum com limão e hortelã.

O que ele disse era algo que Cox sabia, e que servia de tema para as músicas que compunha em parceria com Zími, para a banda Crop Circles.

Ela falou: "É tanto dinheiro gasto com pagamento de pensão pra filha adulta de militar, e dali não sai uma banda que preste."

O universo masculino ainda a chocava em alguns aspectos.

A casa de Silvano Angulo (nascido em Canelones, Uruguay, mas que vivia em São Paulo desde os dois anos de idade, trazido pelos pais, e que por isso falava português quase sem sotaque) era o que ela chamava de " barraco mal assombrado de um gringo louco".

Silvano atribuía essa condição ao fato de ser solteiro, dizendo que é uma das poucas desvantagens de nunca ter se casado. Tinha quarenta e nove anos, sem filhos nem responsabilidades paternas.

Ele também estava de folga de sua atividade de fazer carretos com sua Kombi, e também de sua ocupação como músico, em uma banda de um homem só, em que tocava uma guitarra sentado, tocando a bateria com os pés.

Até aquele momento de sua vida, Cox, de vinte e um anos, não conhecia muitos tipos de homens.

Haviam alguns que tinham uma casa organizada e limpa, mas que eram chatos, reacionários e com gosto musical ruim.

Um outro tipo de homem era como Zími e Silvano, que de tanto desapego pela organização de suas moradias, precisavam fazer a compensação com a doação de seu tempo e energia em prol da arte.

Ela sabia que nem todos os homens se restringiam a essas duas condições, mas a aparição de alguém que fosse um meio termo poderia ser chata, e alguém que fosse ordeiro e talentoso artisticamente seria provavelmente um tipo inacessível a ela.

Ian MacKaye era quem ela considerava um exemplo que deveria ser seguido por mais homens.

Seu círculo de amizades verdadeiras era restrito. Por conta de suas atividades musicais, tinha muitos contatos mundo afora, porém, aqueles dois sujeitos eram as pessoas com quem ela mais convivia cotidianamente.

Quando ela passou a dividir um apartamento com Zími, ele foi obrigado a se adaptar a certas condições sob as quais não costumava viver antes, quando morava sozinho em quartos de pensões, que para Cox seriam deprimentes, mas que para ele eram normais para um cara de meia idade e solteiro, completamente alheio a uma vida em família.

Ela dizia estar ainda desaprendendo informações falsas sob as quais fora programada, inclusive na escola, e sempre ouvia de Zími que não havia perdido nada por não ter vivido no século vinte, período em que, segundo ele, houve a ascensão fulminante da figura do idiota.

Zími repudiava as convenções familiares da classe média. Isso começou na infância, em sua própria casa, e era outro tema que usava em sua músicas.

Eles eram vizinhos de porta no mesmo prédio em que Silvano já vivia há vários anos.

Os dois apartamentos eram, na prática, a extensão um do outro.

Mila Cox dizia que as divisórias eram apenas para que ela tivesse controle para manter certo isolamento de bizarrices do universo masculino, caso isso fosse necessário em algum momento.

Ela foi para a janela. Estava no sexto andar, olhando de cima a Rua da Glória, no centro de São Paulo. Chovia e a cidade passaria pelos mesmos problemas, de novo. Era confortante não estarem presos no trânsito daquele horário.

Viu um catador de latas tirar uma lata do lixo e beber seu conteúdo, antes de jogá-la dentro de uma sacola.

Então virou-se para dentro do apartamento e ficou com vontade de repetir algumas coisas que Silvano já havia falado no começo da conversa, mas deixou quieto.

Zími estava sentado numa poltrona com um curativo sujo pendurado no polegar, pois horas antes havia cortado o dedo quando cortava limão para misturar na bebida.

Ele apenas resmungava para si mesmo que o rebanho humano persegue loucamente o superficial, e que como indivíduos, apenas existiam, mas não viviam, além de serem facilmente manipulados por charlatões.

Mencionava também as péssimas condições das grandes cidades brasileiras, abandonadas e com suas infraestruturas loteadas pelo empresariado parasitário que enriquece cada vez mais, enquanto o povo vive no lixo.

Ele vestia uma camiseta branca com a cara do Damo Suzuki e tinha na mão um caderno em que esboçava a letra para uma música nova, tentando não se repetir demais na temática.

Por costumar dizer o que pensa, já não tinha nem parentes mais.

Eles não tinham religião, então não tinham motivos para não falarem a verdade através de suas músicas.

Sabiam que havia sempre um limite além do qual, a tolerância deixaria de ser uma virtude.

Diante de situações sociais bizarras que se repetiam, tentavam se consolar com a abundância contínua de temas a serem abordados.

É claro que além de tudo haviam guerras também. E havia, nos portais de notícias da internet um imenso espaço desperdiçado com subcelebridades momentâneas das quais eles nunca haviam ouvido falar, e que eram levados à fama pelos motivos mais torpes.

A fama que essa gente tinha era a serem idiotas expostos ao grande público, que em parte se identificava, por também se tratar de um grupo de idiotas.

Nem mesmo o dinheiro poderia compensar tamanha desgraça, onde a integridade e a dignidade são apenas palavras esquecidas no dicionário.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 25/01/2024
Código do texto: T7984392
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