Ele e Ela

Suspirou fundo por um instante e olhou novamente para ela, que ainda o encarava com um olhar bravo e impositivo, algo que não costumava ser de sua natureza.

É sério isso? - Ele questiona sem saber ainda se fica preocupado ou chateado, afinal cada novo caso era mais difícil de engolir que o outro.

Sim, quando tivermos a nossa casa e filhos, eu não vou querer saber de ter cigarro dentro de casa. - Insiste ela com uma firmeza que ainda não parecia natural.

Eles se conheciam a pouquíssimo tempo e não eram ainda nem namorados. O encontro foi como ele gostava de dizer “da forma que faziam os antigos Maias”, afinal se conheceram em um bar ao invés de um destes aplicativos de relacionamento. Era um bar que não fazia o estilo de nenhum dos dois e que provavelmente, se fosse por gosto, nunca frequentariam.

Olha só, eu estou começando a ficar um pouco cansado disso tudo, de só ceder e ceder e já estou ouvindo broncas por coisas que ainda nem vivemos - Diz ele ainda tentando manter a calma.

Como assim? - Pergunta ela mudando para um olhar triste repentinamente.

A gente nem namora ainda, estamos nos conhecendo. Você não tem uma casa, não tem nem como ter uma casa, não temos nem como sonhar em ter um filho na nossa fase da vida e você simplesmente quer me impor as limitações que devo ter no futuro e começar a me cobrar agora? - Pergunta ele.

Quando se conheceram ficaram apenas amigos, conversaram algum tempo, trocaram mensagens. De certa forma ele se sentia um pouco responsável por ela, pois ela tinha um bom coração, algo que deixava ela vulnerável a muitas pessoas más intencionadas. Nas primeiras semanas ele foi o amigo dando apoio nos problemas de relacionamento que ela tinha, ou melhor, de “não relacionamento”, pois a crise de choro era por alguém que nunca conheceu pessoalmente, era alguém que só conversava por aplicativo de namoro e whatsApp, mas com quem já fazia planos de casamento, formar família e etc.

Certo, mas já estou te avisando desde agora, é algo do que eu não abro mão, que eu não aceito. - Insistiu ela.

Concordo - Disse ele.

Concorda? - Perguntou ela se surpreendendo, pois ele normalmente era insistente.

Sim, acho que não é saudável para crianças conviver com isso, acho que se um dia casarmos e tivermos nossa casa, não deve ter cigarros nela, assim como também não deve ter agulhas, produtos químicos nocivos e etc - Argumentou, pois ela tinha planos de trabalhar na área da saúde e era daquelas pessoas que leva (ou estoca) o serviço para casa.

Após uma decepção amorosa de WhatsApp e de brigas com algum dos três ex-namorados com quem ela convivia e falava com frequência, decidiram se ver novamente para uns drinks e reclamar da vida. Ele disse para si mesmo que se comportaria da melhor forma, pois sairia com uma amiga apenas e não deveria nunca cruzar esta linha. “Ela é muito doida”, pensava ele, “não te envolve”. Assim que ela desceu do carro naquela noite, ele travou e perdeu toda a convicção de controle que existia em sua mente, não acreditava nos clichês, mas foi uma paixão arrebatadora à segunda vista.

Como assim? É o meu trabalho - Disse ela.

Sim, vai ser o seu trabalho, mas você não precisa estocar seringas em casa para trabalhar nesta área, né? - Pergunta ele lembrando de ver o estoque de seringas na casa dela.

Uma coisa não tem nada a ver com a outra - Argumenta ela um pouco incomodada.

Na real tem, só que quando é algo que você precisa limitar não tem o mesmo peso e nem o mesmo tom de quando é algo que você quer limitar em mim. - Respondeu ele já se despindo da paciência que restava naquela hora - Eu fiz tudo que você pediu até agora, eu deixei de sair com outras pessoas para sair somente com você, estamos nos conhecendo e nos testando para ver se vale a pena tentarmos um relacionamento, mas enfim… Eu abro mão de tanta coisa e você ainda me cobra outras sobre um possível futuro?

Ele havia se separado do seu segundo casamento, ou melhor, ajuntamento, a quase um ano. Após a primeira mulher, ele jurou que nunca mais se casaria de novo, pois além de traições, descobriu uma vida secreta digna de novela por parte da companheira. Mas com o passar dos anos e a chegada dos cabelos grisalhos, deu uma segunda chance para se entregar. Uma pessoa muito centrada, desesperada para sair de casa e cheia de ambições para o futuro, essa foi a aposta dele, o que resultou em mais um casamento fracassado. Depois disso fez algo que nunca havia parado para fazer na vida, sair com mais de uma pessoas e não assumir relacionamentos. Ser feliz com ele mesmo e deixar a vida seguir seu curso sem pressa nem pressão de precisar estar com alguém. Foi em meio a este cenário que ela chegou na sua vida.

Eu não vejo isso dando certo - Diz ela.

Eu também não - Diz ele.

Ela sai e vai para o quarto, fecha a porta com força após entrar. Ele se levanta e vai atrás dela, assim que abre a porta vê algumas lágrimas no rosto dela.

Sai daqui, me deixa - Pede ela fechando a porta na cara dele.

Ele respira fundo, pensa “eu não preciso passar por isso”, pega o seu violão no outro quarto e senta no sofá da sala onde começa a rascunhar um blues no braço do instrumento. Logo o barulho da porta ecoa pelo corredor novamente, ela vem para a sala de bolsa em punho.

Eu vou para casa - Diz ela.

Ok - Diz ele sem conseguir levantar o rosto.

Ela volta no quarto, apanhar o celular. Ele vai até o banheiro e vê que ela está levando até a escova de dentes que deixava na casa dele.

É isso então? - Pergunta ele.

É isso - Diz ela ainda com cara de tristeza.

Poxa, nós iríamos fazer um teste de 30 dias antes de namorar, não chegamos a quinze - Diz ele pensativo enquanto volta para o sofá.

Eu queria que você me pedisse para ficar - Diz ela se sentando ao lado dele no sofá.

Eu não vou pedir para você ficar, pois você já disse que vai embora. Eu não vou querer mudar o que você acha que deve fazer. - Argumenta olhando para frente, sem conseguir olhar nos olhos dela.

Não fazia quinze dias, quando decidiram que começaram um “estágio probatório” de relacionamento, que estavam no mesmo sofá, enfrentando uma outra crise. Ela havia aparecido de surpresa na porta do seu apartamento. Ele não estava bem, não deixou ela subir, mas outro vizinho havia aberto a porta para ela. Ele deixou ela entrar no apartamento e conversaram longamente. Ele explicava como aquele tipo de comportamento invasivo não era saudável e ela insistia que era só demonstração de afeto. Ela começará um curso sobre relacionamentos, vendido por uma terapeuta da moda, com um grupo de apoio somente com mulheres, onde elas se ajudam a superar relacionamentos, se valorizar e assim por diante. No primeiro momento ele ficou chateado ao ver que parte da sua vida era exposta em um grupo de ajuda, mas ao ouvir as considerações das pessoas no grupo, achou elas extremamente positivas e ficou feliz por ver ela buscando ajuda. “Essa mulher é foda… Ela tem que enxergar que ela é uma mulher foda, independente, com muito potencial pela frente” pensou ele.

Posso ficar um pouco abraçada em você antes de ir embora? - Perguntou ela enquanto já o abraçava.

Pode, mas não muito tempo, por favor. - Pediu ele olhando ainda para frente.

Porque? - Perguntou ela, achando que ele estava indiferente.

Isso não é difícil só para você, mas cada um de nós tem formas e jeitos de externar a nossa dor. - Respondeu, ainda tentando não mostrar emoção.

Ele não gostava de chorar na frente de outras pessoas, nem mesmo em velórios… E os velórios foram vários. Apesar de não ter muita idade, já havia perdido muitos amigos, amigos mais jovens que se perderam na própria vida. Perder já era um signo de sua rotina, seja lares, relações, pessoas, oportunidades… Perder já era parte da rotina e ele acostumou a se ver como um perdedor, o que não se permitia era perder o pouco da dignidade que ainda lhe restava, nem a saúde mental que recuperou a duras penas. Já ela tinha uma agonia com viver o presente, não conseguia se manter ali, muito menos traçar a estrada para o futuro, já precisava declarar tudo que queria ter lá no ponto de chegada, quantos filhos, se eram meninos ou meninas, que tipo de casa queria ter, que tipo de piso a casa teria e aí por diante. Além do presente, o silêncio também parecia ser seu inimigo, falava e falava muito, contava histórias de outras pessoas, expunha o íntimo de todos seus amigos e parentes apenas para ter novas histórias para contar, quando não as tinha, repetia as mesmas de novo.

Abre a porta para mim? - Pediu ela.

Sim - Disse ele se levantando do sofá e abrindo a porta.

Tchau - disse ela sem nem olhar para ele, saltando para o corredor.

Assim que fechou a porta, não precisava mais esconder suas emoções, chorou tudo que podia, abraçou o violão e a música, como se tivessem a capacidade de curar a dor na alma. Ela foi dirigindo as lágrimas até em casa, ao chegar contou a história toda para a mãe, para a tia e para todas as amigas no whatsapp, pois precisava repetir e buscar razão o máximo de vezes que fosse possível. Ele saiu para beber sozinho em alguns bares bem duvidosos, onde às vezes socializa com perdedores iguais a ele e via que não era tão sozinho e único no mundo. Aquela noite ao voltar para casa, ele preferiu dormir no sofá da sala, ainda era muito recente voltar para sua cama que ainda tinha o perfume dela.

Novamente, os dois haviam perdido.

Tiago Silveira
Enviado por Tiago Silveira em 18/03/2024
Código do texto: T8022623
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