O CEGO NO APARTAMENTO 1501

Coloquei os óculos escuros, apalpei a parede só corredor para lembrar de sua textura e fechei os olhos e pus uma venda, embora fosse dia ensolarado lá fora tudo à minha volta escureceu. Naquele momento especial tudo que eu mais desejava era ver cada pedaço do ambiente com a destreza do tato. Aos meus pés agigantou-se ainda mais a imensa sombra da ausência visual, o primeiro passo a ser dado, guiado pelo instinto e as mãos, definiria como seriam os minutos seguintes.

Será que eu conhecia em profundidade o apartamento onde resido há quase vinte anos, suas curvas, os detalhes, as portas e janelas, os móveis e onde estavam? Adentrar na misteriosa seara sem luz depois de uma vida inteira iluminado pela claridade dos dias mexeu com os pilares dos meus nervos. Eu conseguiria permanecer nesse estranho e atemorizante universo durante uma hora sem recuar? Os minutos a seguir melhor diriam.

O objetivo inicial era ir do corredor até a sala de estar sem topar em nenhum móvel, sentar no sofá por instantes, desviar da mesinha de centro, tocar na mesa de jantar e nas cadeiras, limpar a poeira TV, ir às janelas, abrir as persianas, retirar o quadro da parede, po-lo se volta, sentar novamente no sofá, pegar o controle remoto e ligar a tv. Paulatinamente e devagar para não sofrer qualquer pancada no corpo fui alcançado as etapas. Obtive êxito em tudo.

O desafio seguinte alertou-me os nervos, parecia mais difícil por suas dimensões menores. Respirei fundo abraçando a aventura sensorial. Levantei do sofá, estiquei os braços, encontrei a porta e parei. À direita a mesinha americana de vidro metia medo, tão estreita era a passagem no rumo da pia à frente, do fogão à direita e da área de serviço à esquerda. A geladeira estava logo depois da mesa de vidro, um tamborete descansava ao lado da parede em frente às duas.

Devagar, tentando lembrar as pequeninas minúcias, alisando a borda do vidro com a mão direita, ultrapassando-a, depois a geladeira, evitei o tamborete, fui na direção do fogão e peguei a chaleira com a qual voltei no sentido da pia. Cuidadoso, busquei a torneira, senti seus contornos, tirei a tampa da chaleira, pus água, fechei a torneira, recoloquei a tampa e tornei ao fogão. A caixa de fósforo fora deixada sobre a extremidade à direita da base da pia, peguei-a, tirei um palito de fósforo, abri o gás e acendi o fogo da boca do fogão onde já tinha reposto a chaleira.

Feito isso virei-me andando no sentido da área de serviço. Meus dedos viam pelos olhos esse ou aquele ponto guardado na memória dos anos de convivência na área, havia um tanquinho sobressaindo da parede lateral direita, a lata de lixo no chão à esquerda, um pequeno armário para ferramentas e a máquina de lavar roupa à frente. De tudo eu precisava desviar com vistas a abrir a máquina, retirar as roupas lavadas e estender no varal bem acima de minha cabeça, fixo no teto. Topei pela primeira vez da jornada, derrubando a lata de lixo, mas não me feri. Abaixei-me para botar a lixeira no lugar, levantei cuidadoso temendo bater a cabeça no tanquinho, alcancei a máquina de lavar, retirei uma a uma as roupas e estendi no varal, finalizando o périplo.

Dali, analisando as pisadas, as mãos nos objetos e a porta, lá fui novamente ao corredor agora pensando na suíte e nos outros dois quartos. Mas a aventura prosseguirá na crônica subsequente. Aguardem m

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 19/04/2024
Reeditado em 19/04/2024
Código do texto: T8045205
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