Ciclos

*

O Sol subiu lento na enseada, inundando de luz as sombras. Astros reluzentes nessa hora são apenas pontos perdidos e sem cor.

Imagino-a: Passos mais lentos, mãos mais enrugadas. Dentro de si, os pensamentos velozes, misturados, completos.

Estrelas cadentes espelhadas em grandes guarda-sóis, desenhos de luz espalhados pelo chão, chamas que crepitam errantes nas velas do altar e seus santos de barro e gesso.

Ela, anos em rosto de anjo pálido, um corpo que pesava mediante a gravidade, cansado de juntar pedras dos descaminhos, que relutava em se entregar... Mas era hora, precisava.

Foi uma boa caminhada. Escreveu sim, seu livro. Fez, sim, muitos acordes no piano e tocou, apesar de tardiamente, seu violino.

E teve um grande amor. Um amor desses escritos à pena em livros de páginas já amareladas com grandes capas de couro marrom, marcado por rasgos, indescritíveis marcas da idade, como orgulhosos e velhos carvalhos.

Seus filhos cresceram. Os olhos que choraram muitas madrugadas febris vislumbravam-nos adultos. Sérios.

Agora, era ela.

E ele, que ainda dormia o sono dos justos.

Mas agora... Maldita sabedoria acumulada de seus avós, que permitia saber o gosto da hora final.

Sob a sombra da varanda mantinha o diário de cetim já desbotado entre as mãos. Os canteiros, que tinham nomes próprios, olhavam-na. Com a suprema inércia aparente das plantas, choravam orvalho entre flores e abelhas.

A última linha. O último gesto e o último passo.

O último suspiro de vida e o último nascer do Sol.

Ele sentiu a falta dela na cama.

Sendo assim, conseguiu, cuidadosamente, ainda beijar seus lábios, enquanto quentes.

Depois, guardou seu diário rosa, com capa de cetim desbotado, que continha sua última frase “Queria tudo outra vez...” na primeira gaveta do velho criado-mudo de cerejeira. Ali descansava o velho álbum, de páginas já amareladas com capa de couro marrom que denotavam o peso dos anos, cheio de relíquias e fotos de uma jovem com vestido branco e flores nos cabelos e de um rapaz com rosto ansioso no dia de seu casamento. E ao seu lado, aninhavam-se as fotos dos filhos abraçados à irmã mais nova, que ostentava a barriga de seu último mês de gestação.

Fechavam-se uns olhos cansados.

Mas recomeçava-se o ciclo.

(Jessiely Soares)