Resgate na Caledônia

Existe na Serra dos Órgãos, alguns quilômetros depois da cidade de Nova Friburgo, um maciço de montanhas altas, onde o ponto culminante é o Pico da Caledônia, que tem 2.310 metros de altura, segundo velhos altímetros.

É um lugar paradisíaco, que atrai muitos jovens e pessoas que gostam de caminhadas pela mata fechada subirem o Pico, ou explorar seus arredores.

Não é tarefa muito fácil, pois a picada que conduz ao alto é bem íngreme, mesmo estando circundada de arvores centenárias que guardam o frescor da serra, o vigor que emana da pequena selva, a beleza do lugar. Segundo velhos montanhistas, um fato desastroso trouxe um quê de tristeza na linda mata. Foi na década de 60, quando um avião de carreira chocou-se contra a muralha de pedra que está situada pouco abaixo do cume. Morreram todos os passageiros, e até hoje, quando se caminha naquele local, encontram-se pedaços de alumínio com forte marca de queimado, pois no choque, o avião explodiu. É o que se conta, e o que está relatado no inquérito da Aeronáutica que apurou o acidente.

Mas o encantamento do lugar não foi abalado com o triste ocorrido. Afinal, as serras existem no mundo todo, e esta não foi a primeira vez que uma aeronave chocou-se com um paredão.

A garotada ainda inexperiente com subidas forçadas, serpenteios da picada, o que evita um confronto direto com a subida, não prestando muita atenção ao caminho e deixando de colocar algumas marcas, como pequenos montes de pedra, talhos nas árvores e boa observação, pode ficar perdida.

Foi o que aconteceu com um grupo de jovens. Sem um guia que conhecesse o lugar, ou alguém que já tivesse experiência de orientar-se no local, ficaram desorientados e se perderam no lugar.

As famílias, avisadas pelos principiantes das trilhas, como eram chamados, começaram a preocupar-se quando o atraso na data prevista para a volta completou dois dias.

Não tiveram alternativa senão pedir socorro aos bombeiros, acostumados com o resgate na selva. Havia uma vantagem. Todos os cinco “trilheiros” estavam de posse do telefone celular. Um já havia feito uma ligação, mas a repetidora não foi alcançada dado o cerco implacável das altas árvores. Chegaram rapidamente à conclusão de deveriam manter os celulares desligados, com exceção de um, que permaneceria na escuta. Eram jovens e inexperientes nas montanhas, mas não burros. Agiram como deveria ser feito.

Duas lutas haviam-se iniciado. A dos perdidos e a dos bombeiros militares, especialistas em operações especiais, como busca e salvamento.

Os marinheiros costumam dizer, com muita sabedoria, que quem vai ao mar, avia-se em terra. Mas não existia, no grupo de perdidos, quem soubesse disto. Basta dizer que só havia uma faca apropriada para quem se mete em aventuras na mata fechada. Uma faca com bainha e duas lanternas, era o material que os cinco que se embrenharam na picada da Caledônia haviam levado. Três eram moças, e uma delas era a dona de uma das lanternas.

As primeiras horas, quando estamos perdidos na selva, são duras de enfrentar. Tem-se a impressão de perdido mesmo, os nervos se alteram bastante, trazendo todo o tipo de somatização. Taquicardias, aparelhos urinário e intestinal descontrolados, além duma estranha sensação de impotência diante da grandeza da mata cerrada, arrodeada de altas árvores.

O grupo não era fraco mental ou fisicamente, pois as três moças presentes faziam musculação e praticava corridas, como todos fazem hoje. Se é moda, é moda, não se discute. Isto ajudou bastante.

Logo em seguida terem combinado que só um telefone celular ficaria ligado, abriram as mochilas e verificaram o que tinham, minuciosamente. Contabilizaram quatro latas de salsichas, três de sardinha, uma de atum. Além de pães integrais, biscoitos, incontáveis barras de cereais e algumas de chocolate. Chegaram de pronto que de fome não morreriam, o que é uma ilusão. Muitas vezes, o resgate não chega a tempo, a coisa é complicada e algum mal pode surgir. Quando começa a escurecer, inicia-se o grande medo.

Não haviam pensado em limpar o terreno onde provisoriamente acampariam, não cataram galhos de árvore para fazer uma fogueira noturna, enfim, no afã de resolverem logo encontrar o caminho de volta, não imaginaram que poderiam dormir sem acampamento seguro.

Foi o tempo pequeno para Augusto e Roberto, os únicos homens do grupo, catarem gravetos secos, pedaços de troncos apodrecidos, alguns úmidos, outros secos, para fazerem a fogueira noturna. Enquanto isto, as moças limpavam como podiam o local do pernoite, e a palavra cobra era falada sucessivamente. Sim, ali onde estavam existiam cobras, micos, guarás e uma série de animais da floresta. Havia quem dissesse que havia onças. Exagero dos maiores, nem mesmo pequenas pardas nunca tinham sido vistas, desde que a montanha passou a ser freqüentada. Segundo alguns descendentes dos agricultores que continuavam no mesmo ofício dos seus avós, tinha onças no local sim, mas pelos idos de 1930.

O acampamento improvisado foi montado, tendo saído bastante razoável. O buraco feito na terra, que acomodaria o pequeno fogo, fora muito bem feito por Mônica e Silvia, que demonstraram bastante habilidade no preparo do terreno.

Comeram bem, tomaram café solúvel, com a água esquentada num improvisado tripé, combinaram a hora de quem iria tomar conta do sono dos outros, num rodízio. Para iniciantes, estavam indo muito bem, e não apareceram cobras ou lagartos para infernizarem os jovens.

O amanhecer mostrou rostos cansados. A água tinha que ser controlada, mas durante longo tempo que caminharam na selva, haviam escutado o barulho de um regato, coisa pequena, pelo gostoso som de água correndo que os acompanhou longo tempo. Agora, era encontrar o córrego e pronto, estavam salvos, bastava descer o riacho e encontrariam a base da montanha. Este riacho é esplendoroso. Nasce numa ranhura de pedra, a água é muito fria e o seu sabor indescritível. Dizem que a água não tem sabor. Esta é exceção.

Mas a mata guarda seus segredos. O pequeno e puríssimo fio d’água não foi encontrado. A fome é inimiga; não bastam pedaços de salsicha com pão para aliviar o estômago vazio. E nada de encontrar os bombeiros, que eles não tinham conhecimento de estarem a sua procura. Estes, por sua vez, embora muito treinados, sofriam com enorme desvantagem: não conheciam o lugar. Haviam passado por uma casa simples, de agricultor de palma-de-Santa Rita. Um cabo voltou ao local e perguntou quem conhecia a região. O rapaz que foi consultado não teve dúvida:

- Seu Percídio. Ninguém conhece isto igual a ele.

- Tem certeza, garoto?

- Se ele não encontrar, ninguém encontra – falou certo de que ia ajudar o soldado que tinha uma bela faca, uma pistola no coldre e cara de quem não era de se brincar. O jeito decidido de quem está acostumado a arriscar sua vida para salvar a dos outros.

- Como encontro o Seu Percídio, moço?

- Levo o senhor lá. Mas não conte muito com a ajuda. Ele está velho, não é mais o mesmo homem de antigamente. Conhece esta mata toda.

- Mas pode ajudar muito. Vamos até lá.

O menino, já saindo da puberdade, ficou encantado quando o cabo Martins tirou a pistola do coldre, retirou o carregador e o cartucho que estava “na agulha” e deixou que o rapazola examinasse, tocasse como se fora uma bela mulher, uma jóia rara, a comum pistola Imbel, calibre 10 mm, de fabricação nacional e usada pelos policiais militares, inclusive bombeiros no serviço de salvamento em terra.

Seu Percídio escutou a história em silêncio. Andava mal, tinha as pernas enfraquecidas pela idade e pela falta de uso. Havia sido forte demais, mas hoje estava um trapo.

- Eu vou. O senhor tem material, cabo?

- Se forem cordas, mosquetões, comida, água, remédios e rádio, além de celulares, temos sim senhor. Como sabe que eu sou cabo, Seu Percídio?

- Servi ao Glorioso Exército Nacional, sou reservista de primeira categoria – falou o velho Percídio, cheio de orgulho. Os velhos do interior, que não fizeram Tiro de Guerra, mas serviram como soldados em batalhões ou regimentos dão um valor enorme a este fato.

- Pois então vamos tocar, soldado! O dever nos espera.

Encarquilhado, trôpego, mal alimentado e pensando que o seu fim estava por chegar, o velho ganhou alma nova. Estava em missão novamente, sob as ordens de um cabo.

Não demorou subiam todos guiados pelo velho Percídio, a picada onde se viam pegadas, e ouviam o som do riacho, que margeava o fino, mas bem corrente fio d’água.

Depois de longa caminhada, quando as pernas de Percídio já não se mostravam tão fracas e cambaleantes, havia ganhado sangue novo, procurando perdidos na selva que tanto conhecia, ouviram vozes. O tenente que comandava o grupo de salvamento deu um berro. Foi imediatamente respondido por outro. Logo, todos estavam juntos.

Seu Percídio chorou, quando foi beijado por uma das moças. Mas o que falou forte mesmo foi a atitude do tenente.

Bateu continência, perfilado com toda compostura, retirou a faca de sobrevivência, entregando ao velho explorador, enquanto dizia:

- Muito obrigado, soldado. Missão cumprida.

Mesma atitude tomou o remoçado caboclo. Retribuiu à continência ereto, mãos postas na velha calça, a esquerda acompanhando com rigor a costura da perna, a direita fazendo solene continência, como é o costume.

Até hoje a faca está sobre uma tosca cômoda. É o grande troféu do velho Percídio, reabilitado dos anos que se passaram sem novidades, sem conquistas nem glórias.

A vida é assim. De nada valeria um pomposo diploma de herói na parede da velha e bem pequena casa.

Mas a reluzente faca de sobrevivência e combate mostrava que Percídio não era mais um homem idoso e que para mais nada serviria.