Dos Alicerces Maternos

Em pequena, não lembro ao certo da idade, eu gostava de me abraçar às canelas de minha mãe. Simples assim: via-lhe as canelas nuas e era com prazer urgente que grudava-me a elas. Andando, sentada, deitada ou fazendo compras, minha mãe aceitava que sua filha do meio pegasse carona em suas pernas.

Ela gostava de usar saia na altura dos joelhos. Saia jeans, saia xadrez, saia social. Mas, para mim, eram todas iguais. Meu sonho sempre agarrava-se cor-de-rosa às suas canelas depiladas.

Mamãe gostava de tricotar em silêncio, comprimindo os lábios e respirando pesado, lentamente. Eu sentava sobre seus pés e encostava-me. Era de uma melancolia cintilante ver a lã transformando-se em casaquinhos a partir das agulhas que mamãe manejava, num silêncio quente. Sua expressão era indecifrável para mim, náufraga naquele oceano de ingenuidade. Se fosse hoje em dia, eu saberia ler a angústia que se desenhava na testa de minha mãe.

Eu gostava muito de abraçar-lhe as panturrilhas enquanto ela cozinhava. Mamãe fazia o almoço com cara de braba – o que supus mais tarde ser tédio, e não brabeza. Hoje em dia, sei que não era só tédio. Era também submissão pétrea, lágrima coagulada na garganta, sonhos estourados pelas rugas recentes ao redor dos olhos. Eu, em criança, jamais entenderia essas emoções. Eu mal compreendia a história triste que se desenrolava entre meus pais. Entretanto, o consolo possível eu doava: o incansável abraço na altura que eu alcançava melhor.

- Mamãe, sua perna está áspera hoje!

- É que mamãe esqueceu de depilar, querida.

Ela deitava na cama, farta do seu dia amarelo, e eu deitava aos seus pés, admirando os grandes calos nos mindinhos.

- Mamãe, o que são essas coisas duras?

- São calos, querida.

- Galos?!

Estremecia ao imaginar galos picando os dedos de mamãe. Rezei algumas vezes para que Papai do céu não me castigasse com semelhante tortura.

- Mamãe, não tenha medo dos galos. Se aparecer algum, eu mordo.

- Está bem, querida – dizia ela, submersa na sua angústia impenetrável.

Minha mãe passava horas e horas assistindo a novelas, deitada na cama. Lembro-me que por muitas vezes achei enfadonho este hábito de deitar e assistir televisão. Eu tinha muita energia e cheguei a ceder: afastava-me das canelas reluzentes e ia brincar, aprontar, correr sobre a maciez da infância.

Mas chegou um dia em que eu comecei a apreciar as novelas. Assistíamos juntas. Rindo, ou sérias, ou preocupadas, ou discutindo.

- Não acredito que existam pessoas tão malvadas quanto Manuel Henrique, mãe! Olha o que ele faz com Gabriela Tatiana.

- Existem pessoas malvadas de verdade, querida.

Atormentava-me esta tristeza resignada. Muito mais tarde, quando desabou sobre mim o lamaçal da adolescência, isso chegou a ser motivo de brigas mortais entre a gente.

- Mãe, eu não admito que você deixe o pai fazer isso conosco!

- Ele é homem, minha filha. Homem gosta de mandar em tudo, ter o controle.

- Pois não vou deixar. Arrume suas coisas, vamos fugir de casa!

- Filha, vai assistir televisão.

Foi nas canelas de minha mãe que aprendi a gostar de novela, a fritar e cozinhar ovo, a fazer compras no supermercado, a ler revistas de mulher madura, a fazer trança no cabelo, a respirar fundo quando um homem fala sem pensar.

Foi nas canelas de minha mãe que passei a odiar caça-palavras, cigarro, pagode, livros sentimentais, lavar louça.

A partir das canelas de minha mãe, aprendi que uma mulher silenciosa por fora pode não ser silenciosa por dentro. Aliás, furtei essa característica para mim, assumindo as rugas e o respirar pesado de minha mãe quando atravesso períodos difíceis como falta de dinheiro, coração partido e menstruação.

- Mãe, você era tão triste quando eu era pequena. Hoje você é diferente, mais bonita e mais alegre.

- Não, filha, continuo a mesma. Foi você quem mudou.

Vanessa Bencz
Enviado por Vanessa Bencz em 27/01/2008
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