Olho de Peixe

Agora eu cutuco o olho bem devagarzinho com a faca. Tá vendo essa gosminha, essa mesmo, escorrendo na ponta da lâmina? Não precisa ter nojo, passa a mão, é até gostoso. Tá bom, outro dia você sente. Nem adianta me olhar assim, é o meu trabalho, faço pra provar que o peixe tá fresco. Se eu não faço ninguém compra nada. Mulher bonita tem nojo. Não, você é linda, não foi isso que eu quis dizer. Linda até demais, daquele jeito que machuca. Calma, é jeito de falar. Não me olha como se eu fosse safado, é a primeira vez que digo isso pra alguém. Agarramento com a Célia da verduraria? Nem fodendo, desculpa, nem ferrando. Sabe o menino novo do estoque? Então, ele, sim, já pegou ela de jeito. Sei porque ouvi ela gemendo quando fui receber o carregamento de atum, parecia profissional. Não, atum é aquele ali, bem roxinho, esse aí é o salmão. Quer segurar? As madames gostam de comer assim, do jeito que você tá vendo, cru, gelado. Se você quiser experimentar eu corto uma fatia pra você. Eu já provei e achei bem sem-graça, coisa de rico, prefiro coração de frango e ovo frito. E você, curte um churrasquinho com pagode? Conheço um lugar aqui perto que cobra 5,90 o bife com arroz e farinha. Se você quiser... Não, esse cheiro sai fácil, sim. É só esfregar bastante limão e pronto, ninguém nunca reclamou. Você é que é bem cheirosa, hein. Eu gosto desse perfume açucarado, que deixa cheiro no elevador. Já andei, sim, quando fui fazer umas entregas. Não precisa ter medo, é só apertar o botão e pronto. Dizem que no da frente tem até espelho. Sei lá, nesse nunca entrei, deve ser verdade. Agüenta aí que eu vou trocar o gelo do camarão, se demorar o supervisor sente o cheiro de longe e suja o meu lado, preciso do trampo. Quase cem reais o quilo desse de cabeça grande, tá ligada? Um truta meu aluga o quartinho por quinze conto, puta desigualdade social, mas eu não troco de país, não, gosto do feijão. E você, dorme sempre em casa? Ah, sei, mas você nunca se atrasa, toma uma breja no barzinho, sai com as amigas? Mas você não precisa ir na missa todo dia. Reza de domingo que já tá bom, eu nem rezar sei, acredito em Deus, sim, mas sempre caio no sono antes de terminar o pai-nosso. Você confessa? Desculpa, não devia ter perguntado isso, anjo não peca. Não precisa ficar com a bochecha vermelha, é verdade. Eu também fico vermelho, mas só quando vou pra praia, detesto protetor, fico ensebado demais, sei lá, parece sujeira. Você tem cara de que gosta. Não de protetor, de praia. Tenho um primo que me empresta sempre o carro pra viajar, quase um irmão, nem preciso pedir, na real é quase meu. Não tenho carta, não, mas ninguém pára, é sussa. Tava pensando em dar um rolê esse final de semana, sei lá, pegar uma onda. Vai chover nada, não acredito nessa mulher da TV, não. Sempre burcando a praia dos outros, o que vale é o dia, o momento, a neurose da serra, tem tempo ruim, não, foda-se o clima. Cinema é legal também, tudo bem que eu sempre vejo o piratão primeiro, mas o som do shopping é maneiro. Pipoca é cara, escondo sempre um pacotinho de amendoim de casa, prefiro aquele que tem um japinha na embalagem, dá uma sede da porra. Não sou pão-duro, não, mulher comigo é tratada que nem princesa, ganha presente e o cacete. Gosto de dar pijama, sei lá, mania minha. Mas já dei perfume, ursinho, paguei jantar, gosto de ser companheiro, ir na manha, ganhar confiança, na moral, deixo o sexo na mão delas. O quilo de lula sai 23 reais, senhora, tiro a tinta, sim. Não ligo de conhecer a sogra, não, até me dou bem, solto a letra, digo a intenção, acalmo o velha, fico na boa mesmo. E a seção de frios, você gosta? Parece bem movimentada. Você bate um trampo ferrado, presunto, queijo, mortadela, salaminho italiano, sem gordura, fatia fina, maior exigência. Eu no seu lugar já tinha cortado o pulso nessa máquina aí. Como assim, boa idéia?

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 30/01/2008
Código do texto: T839079
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