Carta

Ainda outro dia, chegou-me uma carta. Fora alguma correspondência desprezível, não tenho mais o prazer de receber cartas e isso, de alguma forma, me entristece. Entristece porque as cartas aspiravam permanência e mantenho algumas em meu poder, envoltas em plástico, guardas em pastas, sendo que até pouco tempo, havia cota de e-mails, tinha-se de descartá-los como se fosse coisa menos importante.

Mesmo impresso, não carrega uma coisa fundamental: a caligrafia. Para mim, todas as cartas são escritas em "grafia bonita", mesmo aquelas cuja letra era-me de custosa interpretação. Engraçado como mesmo agora conservo costumes antigos como afastar-me para ler qualquer correspondência ou trazê-las guardadas secretamente no bolso e ir até um bosque ou lugar de árvore, tirá-la do seu esconderijo e degustar cada palavra, até porque as palavras têm sabor.

A caligrafia muitas vezes desmente o conteúdo: essa mesma me fez entender que as palavras de paz, de acomodação com uma situação de desamparo e solidão, não eram verdadeiras. Senti no desenho da letra o desespero silencioso da amante abandonada.

Parece que toda a natureza que envolvia o local onde estava a ler a correspondência, silenciou-se por completo, ou ainda, meus ouvidos fecharam-se à alegria que não estava ali, escrita. Perguntava-me porque minha amiga não fora sincera comigo. Porque dizer-me senão uma mentira, um subterfúgio? Não precisava. No entanto, não serei eu quem a censurarei, dado que eu mesmo não sou sincero quando quero aplacar as dores que me atingem ou, ainda, tente dar-lhes uma coloração de coisa resolvida quando não está.

Foram seis páginas de uma letra extremamente feminina, escritas em tinta preta, caneta esferográfica Bic Cristal, papel como a tanto tempo não via, daqueles que compunham blocos de papel de carta que eu acostumava comprar aos blocos na antiga Papelaria Católica.

Outra coisa: se alguém quisesse passar-se por essa mulher, não me enganaria, mesmo que copiasse, sem erros, letra por letra do alfabeto particular de minha amiga. Ela tinha e tem um costume que pode parecer pueril, tolo, fora de moda de perfumar com um perfume particular, não outro, as páginas da carta, uma a uma, como se fosse um breve borrifar de um "spray", ou algo que o valha, exceto uma, a última, onde uma gota deixou sua marca. Seria perfume? Ou seria uma lágrima que ali se instalou por testemunha mesmo com o perfume, o mesmo de todas as páginas?

Cheguei a telefonar-lhe, logo no começo da noite, como nunca houvera feito. Surpreendeu-se? Entendeu? Quis calar-se? Talvez sim. Quem saberá? Eu não! Foi carinhosa como sempre, um sotaque próprio da terra dela, tão melodioso e tão belo que senti vontade de não mais desligar.

Não tive coragem de tocar no assunto da carta, da incongruência da letra e do conteúdo e nem ao menos perguntar sobre a gota-lágrima da última página. Faltou-me ímpeto, faltaram-me os reais, faltou-me a coragem, não resistiu meu coração a uma dor que conheço e que seria revivida na dela, caso ouvisse.

- A carta chegou? - perguntou-me, ansiosa ou curiosa.

- Sim, chegou hoje, agora a pouco e li agora mesmo. - respondi.

- Que bom! Fazia tempo que não escrevia para ninguém...

Ficou a contar que o computador seria mais rápido mas que sabia que eu guardava todas as cartas em uma caixa, azul, minha cor preferida e a dela. Sim, uma caixa azul que ganhei de alguém que também me amara e fora-se como aquele homem que abandonara minha amiga.

Porém, dele nada me disse e sabia não precisar. A foto do sujeito e dela estava guardada em um álbum da minha festa de aniversário de anos atrás. Ali eles sorriam, tão singelamente entregues um ao outro que chegava a espantar. No entanto, tudo aquilo era história e eu não tive coragem nem ao menos de demonstrar alguma solidariedade. Qual seria a ideal?

- F.! Fiquei triste em saber que você e R. não estão mais juntos - seria essa?

- F. Sinto muito que R. não esteja mais contigo- seria assim?

- Ora, F.! Não dê importância! R. não te merece! Você encontrará alguém muito melhor - seria a solução?

Melhor calar, por isso não disse nada. Falamos das nossas famílias, do trabalho dela, da falta do meu, das músicas, dos vídeos que compartilhei no meu sítio, da ausência da minha escritura. Conversamos pelo tempo que os créditos do celular permitiram e , antes que esgotassem os meus, ela retornou e fiquei preocupado com a duração e o aborrecimento da conta vindoura.

No entanto, ao fim de tudo, ela apenas disse:

-Você sabe, né J? Você que é tanta percepção, soube o que eu quis te dizer, não é?

Fiquei estatelado, sem saber o que dizer. Seria tão simples apenas responder sem fazer comentários mas, no final das contas, era assim mesmo?

- Sim, F. Eu sei.

Manifestou alívio por eu ter entendido a incongruência entre a forma e o conteúdo. Houve um grande silêncio, um chorar em silêncio de nós dois, sem lágrimas mas como se elas estivessem caindo por dentro.

- Obrigado, querido! Eu sei que posso sempre contar com você. Um beijo! Sabe, eu sempre tive medo de te dizer isso mas eu te amo, muito. Você entende como te amo, né?]

- Claro que sei! E é assim também que amo você. Fique bem. Conte comigo sempre, tá?

- Tá ! Um beijo enorme.

- Outro. Tchau!

Por isso gosto das cartas, tão raras. De repente, cresce-me a percepção que, no mundo, nada supera aquilo que o homem faz pelas suas próprias mãos, escritas sem pressa, numa forma antiga, ancestral, da forma como os mensageiros dos deuses, os anjos de Deus e todos os portadores da alegria ou das tristezas, dos decretos e dos mandatos, fizeram.

Será que conseguimos matar isso também? Haverá espaço para esperar?Só haverá uma letra padrão ou haverá espaço para a inconstância e para a contradição? Haverá espaço ainda para ser humano como nas velhas cartas?

André Vieira
Enviado por André Vieira em 27/02/2008
Código do texto: T877604