Destruição

Um ano e meio após o casamento, Renato fizera a primeira viagem sozinho. Parecia chateado, detestava viajar sem Alexandra, mas estaria em uma maratona de reuniões chatas, cercado de pessoas mais chatas ainda e não queria de jeito nenhum submeter sua esposa a esse martírio. Na ocasião Xanda ficou comovida com a gentileza do marido. Sempre tão cuidadoso com ela, tão amável.

No dia do seu retorno, lá estava ela no aeroporto, morrendo de saudades, louca pra cair em seus braços. Alexandra jamais esqueceria aquela noite de amor. Ele estava diferente. Intenso demais, deliciosamente apaixonado. Não que ele fosse um amante ruim, mas naquela noite ele se superou.

Lamentavelmente, depois daquela noite maravilhosa tudo mudou. Dois dias depois, Renato passou a chegar tarde em casa, estava sempre distante, taciturno ou mal humorado. A vida sexual do casal deixou de existir. Sempre que Alexandra o procurava, ele tinha uma desculpa – estou cansado, estou com dor de cabeça, etc... As coisas foram piorando a cada dia. Alexandra por muitas vezes se culpou. Dizia pra si mesma:

- Talvez deveria ter cuidado mais do meu casamento. Não. Decididamente não era esse o motivo. Ela era a mais dedicada de todas as esposas. O próprio Renato dizia isso sempre, pra quem quisesse ouvir.

A situação piorava a cada dia. Renato não era mais o esposo dedicado e apaixonado. Passou a evitá-la, só voltava pra casa bem tarde na esperança de encontrá-la já dormindo. Quando questionado, sempre alegava uma reunião, visita a clientes, afazeres que antes não existiam. Ou se existiam, ele encontrava alguém pra fazê-los. Isso foi na época em que o lar-doce-lar era o seu oásis e os braços da esposa amada era o seu refúgio.

Drasticamente Alexandra viu seu casamento deteriorar-se. Ela já não tinha mais confiança. Com certeza ele teria encontrado outra pessoa. Tentou por diversas vezes conversar com ele sobre o assunto mas, ele sempre fugia. Alexandra estava vivendo dias de muita angústia. Seu paraíso estava ruindo. Estava se transformando num castelo mal assombrado repleto de desconfiança, cobrança, palavras duras, silêncios constantes e distanciamento. Era terrível admitir que tudo isso partia dela, pois ele permanecia calado. Mudo. Fazendo com que ela se sentisse ainda mais desesperada. Ambos sabiam que precisavam resolver aquela situação insustentável. Continuar assim, não seria possível.

Era uma manhã de sábado, e como Renato vinha fazendo há duas semanas, levantou-se muito cedo tomou um banho e se vestiu pra sair. Tentado fazer o menor barulho possível, para que Alexandra não acordasse. Assim que ele saiu do closet, assustou-se ao vê-la sentada na cama.

- Precisamos conversar - disse categoriamente.

- Hoje não, tesouro... por favor...

- Hoje! Se não conversarmos hoje não o faremos mais. Sabe porque? Porque vou embora. Não vou continuar nessa agonia. Eu exijo saber o que está acontecendo.

Renato começou a chorar como uma criança. Alexandra não sabia o que fazer. Nessas últimas semanas tinha experimentado um calvário por causa dele. Sentia-se rejeitada, humilhada e isso fazia seu coração sangrar de tanta raiva, ciúmes... mas de repente vê-lo assim, frágil, perdido... Ela o abraçou com toda força de seu amor. Como se fizesse uma tentativa de resgatar toda intimidade, cumplicidade, amor que um dia os uniu.

- Por favor meu amor, me fala o que está acontecendo. Conversa comigo.

Mas, ele não falava nada. Continuava ali prostrado aos pés dela, chorando compulsivamente. Depois de um tempo, ela conseguiu fazê-lo deitar-se na cama e tomar um calmante, que fez efeito rapidamente, deixando-o mais calmo e relaxado.

- Eu vou falar. Mas, por favor não me interrompe... me deixa falar...se não... eu não vou conseguir dizer tudo...

- Tudo bem... pode falar. Não vou te interromper.

- Primeiro quero te dizer que te amo mais que tudo na minha vida. Que nunca amei mulher nenhuma, como te amo. Mas... confesso que sou um canalha. Eu te traí...

As palavras dele tinha um efeito arrasador sobre Alexandra. Ela mal conseguia manter os sentidos funcionando, para ouvir o final da história sórdida.

- Naquela viagem que fiz sozinho. Eu levei uma antiga namorada. Quero dizer, ela encontrou-se comigo lá, um dia depois. O fato... é que... bem ficamos juntos e quando retornei ela começou a me ligar, me ligava várias vezes por dia, eu pedi que ela parasse, que não me importunasse mais, pois estava casado e feliz... aí um dia ela apareceu lá na empresa, fez um escândalo... e eu resolvi atendê-la, na expectativa de fazê-la compreender.... - Então ela jogou uma bomba na minha cabeça... na minha vida, na nossa vida.... ela... ela disse... ela tem... ela tem AIDS...

A vida inteira, Alexandra tinha conseguido manter algum equilíbrio e até mesmo força para enfrentar as piores situações. Sempre encontrava um jeito de espantar o desespero que por diversas vezes, insistia em tomar conta dela, face as grandes dificuldades que vida lhe trouxera. Os anos de miséria na infância, os anos de árduos trabalhos depois de adulta, de certa forma fizeram dela uma mulher especial. Forte, batalhadora, capaz. Mas ela não conseguia encontrar a tal resistência para essa dor. Acabara de receber a pior notícia de toda sua vida. A voz de Renato ainda ecoava em seus ouvidos.

- desculpa tesouro. Perdoa-me....

- Ela tem AIDS.... Nós temos AIDS...

Aquilo não podia estar acontecendo. Era um pesadelo! Tinha que ser. Sentia-se mal, com ânsia de vômito, sua cabeça parecia um caleidoscópio. Aos poucos, em um esforço que lhe parecia sobre-humano, procurou ordenar seus pensamentos e voltar a seu discernimento. A tontura foi passando e dando lugar a um sentimento de rancor. Uma raiva incontrolável que tomava conta dela como se quisesse sair por todos os poros. Foi quando de sua boca saíram palavras jamais ditas antes:

- Canalha, filho da puta!

Kiki
Enviado por Kiki em 25/12/2005
Reeditado em 25/12/2005
Código do texto: T90229