O Santo de alguém

Ao mesmo tempo em que ele era amado por uns, ele era odiado por outros.

Seu bairro era seu reinado. Os moradores, seus súditos. Sua esposa, sua rainha. Suas amantes, suas consortes. Seus filhos, alguns príncipes e princesas, outros bastardos. Seus rivais, seus inimigos querendo seu poder e o domínio de seu bairro.

Ele começou a vida, com pequenos furtos, brigas de bar. Aproveitou a fama de seu pai na região e se fez em cima. Ajudou pessoas, de sua forma única, e logo essas pessoas se tornaram gratas e em débito com ele.

Aos poucos de tornou um verdadeiro Dom.

Começou incomodar pessoas que queriam entrar na sua área, até que um dia, se viu cercado. Como única saída e salvação de uma morte certa, era um 38 em sua mão direita. Não hesitou. Atirou! Atirou para matar um poderoso chefe de uma organização rival.

Foram 5 anos de reclusão. Porém , foram cinco anos a mais de respeito. Afinal ele matara um homem! Sua fama já estava se estendendo por toda a cidade. Era reverenciado e todos pediam conselhos á ele, benção, mesmo encarcerado.

Ao sair da prisão, retornou ao seu reinado e percebeu a extensão de seu poder. Ninguém incomodava, seus filhos, mesmo os bastardos, amantes, outros parentes e amigos mais próximos. Usava sua força para resolver brigas de casais, de bar ou de qualquer outro assunto. Com uma simples ordem sua, era decidido o futuro de um homem que tentou matar, roubar ou estuprar. Pobres homens! Melhor não saber o que lhes aconteceu.

Seus soldados, homens fiéis e ótimos cumpridores de ordem, com certos requintes, que talvez, mataria de inveja os torturadores do delegado Fleury.

Os tempos foram passando, novos ‘produtos’ aparecendo no mercado, inclusive dentro de seu reinado. Infelizmente, era mais forte que ele. Não sabia como impedir o avanço da droga, uma vez que se trata de vício. Mas estava lutando bravamente contra.

Alguns pontos de distribuição foram instalados próximos ao seu castelo.

Contra sua vontade, ele se viu obrigado a negociar uma paz com o dono daqueles pontos. O traficante, sabendo da fama e respeito daquele homem, preferia o ter com aliado ao invés de inimigo, logo resolveu aceitar o pedido de paz, contanto ficou acertado que ninguém entrevisse em seus negócios e da mesma forma, nada daquele produto deveria ser oferecido aos que eram ligados ao rei de alguma forma.

“Ok! Negócio fechado!”

E assim a convivência foi pacífica durante alguns anos. Junto com estes mesmos anos, novos funcionários foram contratados pelo traficante e a princesa mais nova, ficou uma bela mulher.

Como numa estória de Shakespeare, a princesa se apaixona por um dos homens de confiança do traficante.

Poderia dizer que era um amor incondicional desses dois jovens, mas ninguém tem essa certeza. Esse jovem era ambicioso. Logo se tornou o segundo homem no mundo do tráfico daquela região, fato este que incomodava muito o rei. Sem um motivo aparente aquele jovem o incomodava demais.

A princesa por sua vez, sempre foi muito rebelde com o pai. Não aceitava a ditadura imposta por ele, especialmente para com ela, e não conseguia entender por que seu pai não a deixava passar os limites de seu reinado desacompanhada de seguranças. É por isso, que ninguém tem a certeza se o amor desses dois jovens era realmente sincero, ou se simplesmente não passava de uma briga de poder. Nunca saberemos também.

Esse relacionamento conseguiu se manter no anonimato por algum tempo ainda, porém havia olhos informantes por todos os lados. Para os dois lados. Logo, o rei e o traficante souberam da novidade. Os dois recriminaram severamente este amor, considerando impossível, cada um com seus motivos, embora o traficante não poderia deixar de pensar o quão vantajoso poderia ser para o sucesso de seu empreendimento, se esses dois jovens inconseqüentes resolvessem levar adiante essa sandice chamada amor, realmente.

Mesmo com a eminência de um próspero futuro, o traficante temia pela vida de braço direito. Porém, aquele jovem já era adulto o suficiente para saber dos riscos e agüentar as conseqüências. Afinal vinte anos no mundo do crime, equivale a mais de cinqüenta para quem está fora dele.

O rei, por sua vez, não queria esse destino para a sua filha, para a sua princesinha. Não a queria envolvida nesse mundo de mortes, vícios, roubos e outras tantas coisas nojentas que o cercava. Disse á ela que teria que colocar um fim nessa história toda e que dali uns dias ela iria mudar para outro reinado mais distante, de sua tia. Não tão grande quanto ao que ela vivia, mas mais seguro e bem distante de tudo e de todos, inclusive do próprio pai, mas que era o melhor para ela.

Tudo o que a princesa conseguiu pronunciar foi “Mas me prometa que nada fará contra ele! Não torne o meu ódio por você ainda maior.” O rei prometeu.

Talvez, pela primeira vez na vida, o rei não devera ter mantido sua promessa.

Por razões desconhecidas, o dia da partida da princesa nunca chegou. Os ânimos entre as duas partes, entre o rei e o traficante já não era mais a das melhores e ninguém sabe explicar a razão.

Um dia, depois de tanta discussão, tantas decisões (desagradáveis) tomadas – o rei já estava se cansando daquilo tudo – depois de tanto lamento, rei volta para casa tarde da noite. Naquela noite, deu uma vontade louca de ter cada um dos filhos perto dele. Foi de quarto em quarto, velar o sono deles e dar-lhes o beijo de boa noite e dizer que tudo na vida deles daria certo, sempre. Ao chegar ao quarto da princesinha, não a viu lá. Sua cama estava intocada. Um frio percorreu todo o seu corpo, mas logo se foi, ao ter certeza de que ela não fugira com o traficantezinho. Suas coisas todas estavam no armário. O rei saiu a sua procura. Ele mobilizou todos, família e seus soldados para a captura de sua filha. Olhou em todos os cômodos da casa. Nem sinal dela.

Como um clarão em dia de chuva, o rei teve a idéia de procura-la no quintal. Lembrou que seus filhos têm uma casa em uma árvore centenária nos fundos da casa. Como que adivinhando o que veria, o rei subiu pé ante pé, cauteloso e lá viu o que mais temia. Sua filha dormindo nos braços de seu inimigo!

O rei enlouqueceu! Não mediu forças e nem conseqüências. Entrou na casa da árvore, aos berros, difamando os dois e expulsou o traficantezinho na base da violência, da força bruta, deixando o rapaz com marcas suficientes para perdurar por algum tempo.

Não há necessidade de contar como esse caso estremeceu toda a paz do reinado: o traficante ao mesmo tempo encolerizado com seu pupilo regozijava-se diante do fato acontecido. Os súditos, agora, temiam pela própria segurança e sabiam que uma guerra silenciosa, ou não, estava por vir. A princesa e o pai não se falaram mais. Ela estava com raiva demais para trocar qualquer palavra com o pai. Ele estava decepcionado e preocupado demais para dizer-lhe qualquer coisa. Tomou a decisão de sair de casa e foi morar sozinho.

Traficante e rei não se falaram nunca mais. Os dois lados estavam esperando qualquer atitude do outro lado. Todos estavam na defensiva.

Passado algum tempo, o rei estava desfrutando de seu almoço de família como há muito tempo não fazia. Depois que seu pai falecera, foram raros os momentos como este. Era uma grande família sentada a uma grande mesa farta de almoço. Comeram, beberam, falaram, riram muito naquela tarde. A princesa se limitou ficar pouco tempo a fim de evitar o próprio pai. Aparentemente, ele não deu importância.

Já era noite quando ele decidiu voltar para a sua casa. Estava um pouco zonzo por causa do vinho, mas nada que o fizesse tirar a sua atenção. Quis voltar sozinho, sem nenhuma escolta de soldados. Não naquela noite.

Ao chegar à rua de sua casa, percebeu uma baderna. Carros e motos fazendo racha na mesma rua em que crianças brincavam de futebol e andavam de bicicleta.

O rei não tinha certeza de quem eram aquelas crianças fazendo bagunça. O mais velho deveria ter uns vinte e dois anos. Mas tinha certeza de onde eles pertenciam. Nunca os vira antes.

Vendo aquela algazarra, esbravejou e aos berros afirmou que seria obrigado a tomar uma atitude mais severa se alguma coisa acontecesse àquelas crianças que estavam brincando por conseqüência da molecagem que estavam fazendo com aqueles carros e motos. E os obrigou a sair dali imediatamente.

Aos risos e ironias, aqueles jovens se foram.

Não demorou muito, bateram á porta do rei. Ele abriu sem nenhum cuidado como costumava ter, e havia cinco pessoas a frente de sua porta. Uma delas estava segurando uma arma, que imediatamente descarregou o pente de balas em cima do rei. Seu assassino? O traficantezinho. O suposto amor incondicional de sua princesinha.

O traficantezinho teve a sua vingança. O rei está morto!

Os súditos resolveram mudar de reino. Agora já não teria paz naquele lugar. Nem mesmo um reinado haveria mais.

A família do rei, mais do que depressa acionou policiais que deviam favores ao rei e conseguiram capturar três dos cinco culpados. O traficantezinho continuava livre – apesar de que havia interesses também por parte da polícia em deixar este rapaz livre.

A princesinha entrou em choque. Numa mistura de arrependimento, ódio, amor e culpa se calou e nunca mais falou ou saiu de casa.

Hoje ainda, após um ano da sua morte, o rei ainda é lembrado. Varias teorias a cerca de sua vida e morte, são ditas, muito é falado, várias teorias são discutidas. Mas o que é comum em todas as bocas é que ele foi um santo para alguns. Ele morreu numa sexta feira santa!