A Flauta

Eu era ainda criança quando aprendi a pausar meus choros, guardar segredos e amansar certos sentimentos. Aprendi que a dor é do tamanho do que aceitamos dela como sofrimento e que as lágrimas são as nossas fiéis testemunhas de tudo isso. Cresci pautando passos, respeitando os horizontes e contemplando as sombras das estradas ensolaradas; as árvores frondosas nem sempre me guardavam dos olhos do tempo. E assim pude eu ser criança e viver ingenuamente caçando maldades e desviando-me dos espinhos que os meus desejos, alguns deles, me ofereciam.

Nunca quis casar-me para não ter um esposo como meu pai. Minha mãe, coitada dela e de mim, sofria muito. Ele era tão generoso quanto rude. E o melhor verbo que nascia de seus discursos familiares era a proibição. Nunca soube o que era liberdade!

- Cinira, você não ouse namorar com esses moleques da rua!

E eu engolia os anos e ganhava experiências e havia também doces saldos; nem tudo era desaviso e dor; eu sorria, eu corria, eu cantava.

Éramos quatro! Meu irmão era o mais afoito da casa. Enfrentava-o sem dó. Do meu quarto eu ouvia os esturros dos dois no desencontro dos seus discursos.

Papai trabalhava para uma empresa inglesa; dirigia os velhos bondes de rua. Maceió ainda era mansa e pacata. Certo dia ele foi demitido. A empresa ia deixar o país. A modernidade estava chegando e chamando consigo os automóveis. Quando ele recebeu o dinheiro de sua indenização, lembro-me como se fosse hoje, perguntou à mamãe:

- Queres uma casa pequenina e nova para morarmos livres do aluguel ou uma alugada e com móveis novos? A escolha é tua!

Ela optou pela primeira hipótese. Passamos a morar numa casinha com dois cômodos. Sentávamos nos caixotes vazios de transportar batatas-inglesas. Mamãe estava contente. Tínhamos casa própria!

Meu irmão morreu cedo, aos 51 anos. Já era desembargador. Meu pai orgulhava-se dele. Morreu cinco anos antes do filho. – ainda juiz! As velhas desavenças do comecinho da adolescência foram resolvidas pelo orgulho paterno na figura que representava para ele ter um filho envernizado por tanta autoridade social. Eu o observava entretida enquanto concluía meu curso de enfermagem. Aí fui a São Paulo pós-graduar-me. De volta a Maceió, fiz concurso público, passei e fui trabalhar em Aracaju. Levaram-me até o Arcebispado. Entreguei minha carta de recomendação e o propósito fiel de criar com Dom Eugênio uma duradoura amizade. Àquela época se procedia dentro dessas recomendações. Fi-lo exatamente como me fora exigido.

Eu acredito que a vida seleciona algumas pessoas para viverem juntas certas situações. Nomearam-me diretora da escola de enfermagem. Passei a construir novas amizades – boas amizades.

Conheci Abílio por acaso. Ele namorava a diretora da escola a quem eu substituíra. Chegou-me a serviçal do horário e disse-me:

- Aí fora está aquele homem que sempre vem aqui!

- Quem?

- Quem o conhecia melhor era dona Irene!

Ele entrou! Permiti que se sentasse e tomasse um copo com água. Conversamos por quase duas horas. Ele deixou-me bem impressionada com a sua conversa. Era um homem fidalgo, generoso, absolutamente higiênico, perfumadíssimo! Quando nos acostumamos com a amizade sincera que tecemos juntos, as conversas costumeiras dos fins de semana, quando ele estava na cidade, tornaram-se mais alegres. Saíamos sempre: ele, eu e Dalva, uma amiga sincera que Aracaju tinha me dado!

Quando Abílio resolveu dizer-me que me amava, fê-lo ao Bispo. Levou-lhe um pedido para que ele falasse comigo e me convencesse a aceitá-lo como esposo!

- Eu não posso dizer a você, minha filha, se deve ou não casar-se com Abílio. Ele é um homem casado no civil mas separado há muitos anos. A ex-esposa dele já está casada de novo. Mas o seu coração é que deve decidir.

- Meu pastor, o que devo dizer-lhe?

- Como seu Pastor nada poderei dizer-lhe, filha; mas como amigo querido daquele grande homem que tive a honra de conhecer na intimidade de sua família e pelo imenso bem que lhe quero, diria que case-se! Na Igreja Católica você é solteira. Obedeça ao que seu coração está lhe dizendo.

Casamos na manhã de um ensolarado domingo primaveril. Era a flor mais feliz dentre tantas outras. Vivi quarenta e um anos casada com aquele que foi o homem mais humano e justo que pude conhecer em toda a minha vida.

Após o almoço, quando estávamos em nossa casinha de praia, em quase todos os fins de semana, ele se deitava na rede do alpendre e só dormia após ouvir-me tocar minha flauta doce por quase uma hora ininterrupta. Antes de cair no silêncio feliz do seu sono ele sempre fazia o seu olhar dormitando encontrar o meu. Eu me sentia feliz com isso. Seu sono parecia-me santo.

Há cinco anos estou viúva. Todas as noites, antes de ir dormir, retiro a flauta de sua caixa, beijo-a, fabrico algumas lágrimas de saudade mas não consigo tocar. Ele não está mais presente para me motivar a fazê-lo com a alma, já que nunca aprendi a tocá-la com o corpo.

- Cinira, não podes lembrá-lo sem que tua flauta fale...

- Poeta, meus dedos não me obedecem, meus lábios tremem demais e meu coração dispara. Não arranjo forças nem para tentar.

Há um mês fui surpreendido em casa de uma irmã minha, a Adélia, ao ver Cinira tocar sua flauta doce. Eu hoje posso entender melhor o porquê do seu comportamento assim, rejeitando tocá-la..., pois o que de sua flauta sai não mora entre nós, nem nos pode ser dirigido. É um anjo quem toca entre os lábios dela e o que ele toca vai direto habitar um lugar distante que o olhar não acha, mas o espírito sabe onde fica. Hoje não acredito tanto que Abílio tenha existido em carne e osso, nem tampouco que Cinira seja minha amiga. Nem sei se tudo isso o que escrevi foi-me um sonho...será?