O DINHEIRO DESPREZADO

Na segunda metade de 1998 cedi finalmente à inquietação de voltar à comunhão da igreja Adventista do Sétimo Dia, onde eu nascera e crescera, sendo criado com base em sua filosofia. Havia dezenove anos que, justificado com motivos demagógicos, mas por querer conhecer os prazeres da vida comum, deixei o convívio e a prática dos ensinamentos da igreja, que, eu sabia, eram fundamentados na Bíblia observando a tudo sem distorções. Passados esses dezenove anos, já conhecera as práticas das pessoas comuns, suas buscas por felicidade e prazer, seus pensamentos sobre igualdade, reciprocidade, justiça, verdade e coerência e não conseguira me conformar com pensamentos tão voltados para o individualismo, mas que não produziam satisfação para esses indivíduos. Portanto, desejava retornar ao convívio da filosofia comprometida com o sentimento e bem-estar dos outros e da coletividade.

Primeiramente questionei meu trabalho, sendo que me abrigava num dos empregos mais paternalistas que tive, onde ganhava um salário razoável, acrescido de mordomias e regalias diversas, como carro da empresa para rodar, inclusive a passeio, além de diárias de hotéis três estrelas para trabalhar nas praias de Santa Catarina no verão. Tudo isto para cooperar com a disseminação do alcoolismo, que, eu sabia muito bem, é o maior mal social do Brasil, para não dizer do mundo, que destrói muitos indivíduos, seus cônjuges e filhos. Isto eu fazia através da habilidade do desenho, que Deus me dera desde a infância e me concedera aprimorar através da experiência em jornais e agências de propaganda que eu tinha trabalhado. Mas nessa empresa reduzia meu dom usando-o apenas para pintar a marca de uma famosa água ardente em paredes dos bares (ambiente que eu nunca simpatizei), lancherias, armazéns e mercadinhos.

Mas eu queria agora regressar para a igreja Adventista, onde deveria refletir o desprendimento de Cristo em favor das pessoas, e, sendo assim, entendia que estava jogando no time errado, onde pensava primeiramente em minha sobrevivência e bem-estar, sem considerar que para tal impulsionava milhares de meus semelhantes ao sofrimento.

Ponderei com um pastor adventista sobre o que devia fazer, mas ele resguardou-se de dar resposta que me levasse ao desemprego. Entretanto, minha mente, cheia de conhecimento, haja vista que eu fora profissional de propaganda, não poderia fazer de conta que não conhecia o poder de indução da propaganda, especialmente do marketing que expõe a marca do produto na fachada do lugar onde ele é vendido. Uma das maiores causas do sucesso da Coca Cola é justamente esta: a exposição sutil da marca em filmes e placas nas paredes às portas dos bares, lancherias, outoors nas estradas e caminhões de entrega. Sempre discutimos isto nas reuniões de trabalho nas agências de propaganda em que trabalhei.

Algumas pessoas argumentaram que se esse trabalho era o meu ganha-pão estaria justificado por seus efeitos danosos à sociedade. Entretanto, essa conversa me soava demagógica, pois eu conhecera a devastação da minha família por conta do alcoolismo do meu pai, o que contribuiu em parte para a morte do meu irmão, outro alcoólatra, além de usuário de outras drogas, propiciadas e estimuladas também pelo alcoolismo. Isto, sem considerar que, na infância, meu pai tinha sofrido com o alcoolismo do meu avô, que reduzira a vida de sua família à miséria e inferno. Sem contar também que todos os irmãos do meu avô sofreram e morreram por conseqüência do alcoolismo, causando dor e sofrimentos também para suas famílias.

Outras pessoas argumentaram que os indivíduos têm livre arbítrio e que bebem por sua livre escolha. Entretanto, nem este argumento era satisfatório. Todavia, eu não conseguia explicar bem por que. Dias mais tarde, porém, entendi que os indivíduos somente exercem a verdadeira liberdade de escolha quando suas escolhas estas são feitas com base em amplo e claro entendimento, conhecendo os benefícios e malefícios do que consomem ou fazem, o que a propaganda de bebida alcoólica não oferece. E quanto aos cônjuges e filhos dos alcoolistas, eles não têm escolhas.

Portanto, embora que a lei dos homens me inocentasse, o bom senso e a cordialidade não deixavam dúvida que para o mundo ser melhor é imperativo que cada um faça sua parte, contribuindo com sua parcela de sacrifício.

Portanto, jamais eu iria refletir a Cristo tirando meu sustento e regalias de um trabalho que contribuía para o sofrimento e não para o bem-estar das pessoas, sendo que como membro do corpo de Cristo eu deveria produzir o contrário.

Então decidi que deixaria o trabalho. Para tanto, planejei fazer um acordo com meu empregador, recebendo os direitos trabalhistas, com que pagaria minhas contas atrasadas e compraria um computador para montar uma pequena agência de propaganda. Feito o propósito, coloquei tudo nas mãos de Deus.

Reservei então um dinheiro para a compra do computador, que naquele tempo ainda não era um artigo tão popular, tendo um custo um pouco alto. No dia anterior eu e o Pedrão, um amigo que sabia bem mais que eu o tipo de configuração que eu precisaria, acertamos a compra de um aparelho na cidade vizinha. Na manhã do dia dezessete saquei o dinheiro com que pagaria à vista o rapaz que viria entregar e instalar as máquinas. E, não querendo ficar em casa desde o almoço até às dezesseis horas, quando ele chegaria, decidi ir à madeireira próxima tratar do primeiro trabalho. Preocupado, porém, em transitar com um pequeno maço de dinheiros numa maleta, decidi deixá-lo em casa, pondo-o na segunda gaveta do roupeiro, sendo que a meu ver o ladrão procura primeiro na primeira e, pensando que o proprietário tentou enganá-lo, procuria depois na última.

Passado das dezesseis, liguei para o rapaz que se desculpou acrescentando que chegaria até às dezessete horas. Quando chegou, no caminho para casa, pegamos o Pedrão, que deveria conferir se o computador tinha a mesma configuração do dia anterior. Após abrir o portão, fui à frente do carro até à porta da casa, a qual encontrei entreaberta, percebendo logo que fora arrombada. Entrei com cuidado, tendo o rapaz e o Pedrão na minha retaguarda. Logo na sala vi que meu rádio de fones de ouvidos, que eu deixara sobre a mesa, fora levado. Entrando no quarto com cuidado, vi uma das gavetas do roupeiro emborcada sobre a cama. Virando-me para o roupeiro, vi-o todo aberto e revirado. A gaveta do meio estava puxada até a metade, com apenas uma camiseta no interior. As outras camisetas estavam espalhadas pelo chão. Verifiquei que tinham levado um par de luvas e um jaqueta de couro muito grossa, além de um calção de paia, uma caixinha contendo um par de alianças de ouro, sem contar seis reais em moedas de um centavo, que eu estava colecionando. Sendo assim, por que teriam deixado o pequeno maço de dinheiros contendo quase três mil reais?

E não deixaram mesmo, pois eu sabia que tinha posto e porque tinha posto na segunda gaveta, que agora estava vazia, sendo que agora eu já tinha tirado a única camiseta de seu interior. Mais tarde vi que minha mochila, que estava na parte inferior da estante da sala, fora levada com a bateria da filmadora em seu interior. Por sorte não viram a filmadora e o carregador que estavam atrás da mochila no fundo da estante, mas levaram minha câmara fotográfica Olyimpus Trip, que estava sobre a estante.

Com lágrimas na garganta, fui à porta e dirigi-me ao rapaz e o Pedrão que me aguardavam na rua segurando os componentes do equipamento. Disse ao rapaz que, infelizmente, nosso negócio não poderia ser finalizado e que eu estava em sérios apuros, pois não tinha mais emprego também. Dirigi-me ao fundo do terreno para falar com o vizinho e ver se não tinha visto os arrombadores. No caminho pensei por que Deus teria permitido que eu entrasse em tal enrascada, sendo que tinha deixado meu emprego por não querer mais prejudicar a Seus filhos. Vendo que o vizinho não estava, retornei pedindo a Deus que fosse radical e fizesse o dinheiro reaparecer no mesmo local onde eu o tinha colocado. Pensei que Ele não duplicaria as cédulas, sendo que então as duplicatas seriam falsas. Todavia, pedi-Lhe perdão por querer determinar como Ele deveria fazer Seu trabalho. Disse-Lhe que sabia que Ele sabia o que fazer e que então fizesse o que achasse necessário. Dirigi-me novamente ao quarto acreditando que o dinheiro estaria lá e pedindo a Deus que não deixasse minha fé vacilar. À frente do roupeiro, olhei calmamente pelo vão deixado atrás da gaveta do meio, que estava puxada, e vi o maço de dinheiros encaixado entre as camisetas e a parede de trás da gaveta de baixo. Pensei logo que se tratava de um maço de jornais cortados e disfarçados como dinheiro que os arrombadores teriam deixado para me enganar. Tomei, porém, o maço e folhei-o lentamente, percebendo que era mesmo o dinheiro.

Meu coração foi à boca. Não acreditava que Deus realmente tivesse dado tanta atenção a mim. Após pôr o maço com cuidado no bolso apertado da calça jeans, dirigi-me aos dois, que continuavam como estátuas à frente da porta com os componentes do computador nas mãos. Convidei-os a entrar e ver que eu não tinha encenado todo aquele acontecimento. Eles, porém não quiseram, alegando que deveria deixar como estava para a polícia fazer a investigação. Disse ao Pedrão na frente do outro que Deus tinha confirmado tudo o que eu vinha lhe falando sobre Ele.

Era uma quarta feira, por isto à noite fui ao culto de oração da igreja que eu freqüentava no bairro. Após as pessoas exporem seus testemunhos e pedidos, o dirigente convidou três pessoas para orarem em favor de todos. Sendo que fui escolhido entre os três, quando orava, agradeci a Deus por ter salvo meu ganha-pão naquele dia. Então Ele me fez lembrar que naquele mesmo dia eu estava a completar trinta e três anos de vida que Ele também me dava. Então lhE agradeci por ter me dado tão importante presente de aniversário, pelo que pude abrir o negócio do qual tiro meu sustento e o de minha família até hoje.

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 07/04/2008
Reeditado em 15/04/2008
Código do texto: T934719