Dom Caramujo - parte 02

Esse capítulo de Sandra daria só ele um bom livro, então para diminuir o impacto e o cansaço dos olhos do leitor, digo que certo tempo depois, um ano talvez, já na terceira série do magistério, quando faltava pouco para me formar. Nesse tempo já havia superado o medo da rejeição pelo meu aspecto tísico, e fazia minhas aulas de estágio com regularidade. Também já havia perdido o título de ‘o melhor aluno da sala”. Isso já não me importava mais.

Havia tentado esquecer Sandra namorando uma outra menina. Devia Ter então quinze anos. Essa moça que eu comecei a namorar era parente do dono de uma estofaria onde eu trabalhei um tempo.

Eram evangélicos praticantes. Adventistas do Sétimo Dia. Cheguei mesmo a ir em algumas reuniões deles na Igreja. Apesar de minha família ser católica praticante e eu chegar a me inscrever para ir estudar em um seminário, não via problema nenhum nisso. Era também de uma família com mais posses do que a minha, e isso acabava por prejudicar um pouco nosso relacionamento. Apesar de estar com essa moça, eu não conseguia esquecer Sandra.

Então, como ia dizendo, quando faltava pouco para me formar, em setembro daquele ano, nos mudamos de cidade. Fomos para uma cidade mais ao sul, distante uns 180 quilômetros da cidade onde Sandra morava. Por mais que eu disfarçasse, nunca a esqueci. Não conseguia, afinal a tinha diante dos olhos durante toda a noite e ás vezes ainda durante o dia, quando estagiávamos juntos em alguma sala.

Sim, alguém já sabia do meu sentimento para com Sandra, pois era muito sofrimento para carregar sozinho. Tinha feito amizade com um rapaz da sala de aula. Seu nome era José. José Martins. Era baixo como eu, no entanto tinha mais auto estima, e isso nos aproximou. Aos poucos peguei confiança nele e ele em mim.

Confidenciei o que sentia e ele sorriu. Disse que seria muito louco se não sentisse algo por ela. Falou que todos na sala tinham uma atração por ela. Foi difícil fazê-lo entender que o que eu sentia não era atração. Aos poucos ele compreendeu. E com a sua ajuda eu aprendi a disfarçar o que sentia quando a via com o tal de Daniel.

Mas voltando ao assunto, quando no meu último dia de aula despedi-me de todos e, criando coragem, pedi a Sandra uma recordação ela, sorrindo, me deu um pequeno cartão feito em cartolina. Guardei o cartão no meio dos cadernos e saí para um canto. Eu não pude conter as lágrimas. Então ela apareceu. Foi somente naquele dia, naquele instante derradeiro que conseguimos ficar a sós, sem nenhuma outra alma para nos atrapalhar. Mas minha timidez calou minha boca como uma mordaça cala o refém e guardei comigo tudo o que senti por ela. Como o cruel destino pôde me reservar somente este instante de solidão com minha Deusa?

Pois é, então saí dali, chorando, sem dizer a ela o que sentia, apenas chorando, levando apertado junto aos cadernos e livros aquele pequeno cartão de cartolina.

Em casa, já mais calmo, no pequeno quarto que dividia com meu irmão, o segundo, abri o cartão e o li para me certificar do que havia lido: era o convite para o noivado dela com o Daniel.

Mudamos para a outra cidade no dia seguinte. Me despedi de todos. Aquela pequena cidade, jamais sairia da minha memória. Hoje é palco de disputa por colonos que sonham em ter um pedaço de terra. A cidade o leitor pode pesquisar, está no interior de São Paulo e se chama Rosana.

Pois é, nessa outra cidade para onde nos mudamos meu pai conseguiu abrir uma loja. Eu comecei a trabalhar de dia e estudar á noite.

Meu irmão, o segundo, se dedicou mais ao futebol. Conseguiu certa notoriedade no local. Talvez até mais que eu. Para dizer a verdade, bem mais. O leitor talvez me pergunte por que chamá-lo de segundo, bom por que ainda tinha o terceiro, homem. Como disse antes éramos em sete irmãos, sendo que um nasceu morto. Os dois primeiros nascimentos foram do sexo feminino. Logo depois então o natimorto, eu, outro menino, uma outra menina e então o terceiro.

Nessa cidade eu consegui logo uma namorada. A primeira para ser exato. Pois até então só havia conhecido aquele amor de Platão. Ela era uma menina muito meiga, carinhosa e bonita. Não tanto quanto Sandra, mas era bonita.

Seu nome era Lindalva, mas gostava que a chamassem de Linda. Nos conhecemos na sala de aula. Eu por ser novato na cidade atraia olhares curiosos das moças e os rapazes olhavam-me com outros olhos. Ciúmes, inveja, ou até preconceito por ser recém-chegado. Meu corpo começava a sofrer certas transformações, e eu começa a perder o trauma da incapacidade física.

Durante uma exposição de trabalho, Lindalva e eu trocamos as primeiras palavras. Na saída da aula, a levei até sua casa. Não, não tinha carro. Fomos caminhando lentamente, conversando e quando vimos estávamos com as mãos dadas.

Dias depois eu transava pela primeira vez. Não posso dizer que foi ruim, nem que foi como eu esperava. Mas foi algo novo. Era algo que ansiava, mas como tinha lido várias revistas pornográficas, havia criado muitas fantasias. Com o tempo compreendi que fantasias existem porque são apenas coisas da mente. Senão não seriam fantasias, seriam realidade.

Linda era muito aberta a diálogos sobre sexo. Eu me sentia um noviço perante uma madre superiora. Ainda era tímido. Minha timidez me afastava de muitas pessoas.

Ela abriu minha mente para muitas coisas. Nessa época eu comecei a viver um pouco do que seria meu futuro. Não conseguia ficar com Linda em lugar onde houvesse muitas pessoas. O Caramujo em mim falava mais alto e ansiava pela Concha.

Linda a princípio achou tudo normal. Mas com o passar do tempo ela viu o quão inseguro eu era. Nessa época eu trabalhava em um mercado, depois de já ter trabalhado em carvoaria e também em um bar. E nesse mercado onde eu trabalhava, volta e meia Linda aparecia. No entanto não entrava, me chamava lá para fora e conversávamos rapidamente. Só mais tarde entendi porque não entrava para dentro do mercado. Na verdade não era bem um mercado, mercearia seria o nome mais exato.

O leitor pode estranhar eu falar da minha timidez e trabalhar em lugares onde atendia ao público, no entanto isso é real. Gostava de conversar, de lidar com as pessoas, no entanto não gostava de ficar em meio a um grupo de muitas pessoas. E quando estava com essas pessoas, para disfarçar minha timidez eu precisava estar sempre conversando.

Bom, certo dia descobri que o dono do Mercado onde eu trabalhava já havia namorado com a Linda. Ela mesmo me contou. Até aí tudo bem. Mas um certa feita passei um susto danado.

Havia um cliente deste mercado que possuía uma equipe de mateiros. Mateiros eram as pessoas que tiravam a madeira da mata e traziam para as madeireiras. Ás vezes essas pessoas ficavam quinze, vinte dias na mata. E esse senhor sempre que ia até a cidade fazia compras para o seu pessoal nesse mercado onde eu trabalhava. Bom, certo dia, esse senhor estacionou seu caminhão longe do mercado, era um caminhão velho com a carroceria retirada, ficando só o estrado para colocarem as toras em cima. O velho ficou lá dentro conversando com o Dono do Mercado, como não havia mais ninguém eu fiquei do lado de fora. Havia somente uma porta de entrada para o mercadinho aberta, a outra estava fechada. Encostado a essa porta vi quando Linda passava na rua e a chamei, começamos a conversar e então de repente o velho cliente saiu do mercado.

---- Linda! –Que faz aqui?! – disse ele para meu espanto.

Como assim? Ele a conhecia?

Era o pai dela.

Na hora ele a fez partir sem sequer se despedir de mim.

Olhou-me com aqueles olhos de homem mau, sem sentimento, que somente quem vive com homens de todas as estirpes e caráter dos mais variados pode ter.

Com a intervenção do dono do Mercado eu consegui me livrar. No entanto tive que sair do serviço.

Dessa época da mercearia até hoje trago algo sem resolver dentro de mim.

O dono da mercearia era jovem, menos de trinta anos e sua esposa há menos de dois anos lhe havia dado o primeiro varão. Ela era loira, bonita, e eu fui trabalhar no local, para que ela pudesse cuidar melhor da criança. Até aí tudo bem. Eles tinham um amigo, a quem chamavam de Galo. Era um boa praça, como diziam. Volta e meia aparecia por lá e ajudava a cuidar da mercearia. Tomava uma cerveja, conversava um pouco e logo saia. Mas, em certo momento eu pensei Ter ouvido algo mais.

Era um dia de chuva, Zé Goguinho, o dono da Mercearia, não estava. Havia ido até o banco, não sei, não lembro direito. O fato é que não estava em casa. A casa era contigua ao mercado. Galo chegou, de guarda-chuva, um pouco molhado.

Foi até os fundos, na casa. Disse que ia secar-se um pouco. Não estranhei, ele era íntimo do casal.

Então em dado momento tive que ir arrumar uma prateleira. Algumas goteiras estavam penetrando pelo telhado e tinha que mudar a posição de alguns produtos. Foi nesse instante que ouvi algo que até hoje não sei se foi coisa da minha mente, ou realidade pura e simples.

" Querido, está todo molhadinho!'- dizia a mulher da mercearia.

" Tome cuidado! Ele pode ouvir! - devia ser eu o "ele".

" Que nada! Com o barulho da chuva, não ouve nada! O Zé vai demorar ainda! Ele nem desconfia ... - não pude ouvir outras palavras, a chuva realmente atrapalhava meus ouvidos.

Então depois de alguns minutos esticando as orelhas e prestando mais atenção por entre as paredes de madeira.

"Filhinho..." --- será que eu ouvira bem? O Galo chamara o filho do Zé Goguinho de filho? Então ... ??? - me afastei da parede e fui limpar outro lado da mercearia bem a tempo, pois menos de dois minutos depois Gallo saia pela porta do corredor que dava acesso a mercearia.

Mas voltando a Lindalva.

Por medo, ou por covardia, acabei desistindo do namoro com Linda. No dia em que disse a ela que estava tudo terminado ela teve um ataque. Sofria de epilepsia. Mas não foi nada grave. Graças a Deus! Apesar de tudo, da minha covardia por assim dizer, não queria mal a ela.

Bom, coisa de uns seis meses depois de estar só, sai da cidade junto com meu pai. A loja não deu resultado e fomos morar no interior do Paraná. Meu pai sempre foi um homem trabalhador e honesto. Não sabia ele que comércio e honestidade não caminham abraçados, quando muito andam na mesma estrada. Mas era persistente o bastante para não arredar pé de uma idéia. Teimoso até demais para colocar as coisas no termo popular. Uma fé em Deus que fazia crer-me um mísero pecador em cada pensamento e ação. Disciplina e ordem, era metódico e sincero. Com todos esses predicados o leitor acha que ele poderia se dar bem metido em comércio??

Nós fomos na frente para arrumarmos um lugar onde morarmos.

Dois meses depois minha mãe e o resto da família chegaram. A cidade era minúscula. Apenas uma rua a cortava de um extremo a outro. Faltava para mim a terceira série do segundo grau. A escola local era do primeiro grau, chegando até a oitava série nas aulas a noite. Portanto acabei ficando um ano sem estudar.

Eu logo arrumei serviço em uma oficina mecânica e meu pai se empregou como gerente de um supermercado. O único da cidade. O dono era um fazendeiro da região que se agradou do meu pai e lhe deu o serviço, indo viver descansadamente em uma fazenda

Nessa época eu largara definitivamente o futebol. Meu irmão, ao contrário se aventurava e sonhava cada vez mais nessa área. Vários conhecidos do local aproveitavam-se dos seus sonhos e esperanças e lembravam-se dele somente nos fins de semana, onde por míseros centavos, desmontava a defesa adversária, trazendo mais um troféu para a cidade. No entanto, ajuda real, daquela que sustenta e alimenta o corpo e a alma, nada de concreto, como um serviço ou um salário fixo mensal.

Mas nessa cidade ficamos somente dois anos. Logo depois mudamos novamente. O leitor já deve ter reparado que levávamos uma vida de cigano. Sempre de um canto para outro. Isso em parte era bom, em outra não. Nunca conseguíamos ter nada. Quando começávamos a obter algum bem, logo nos desfazíamos para ir para outro lugar.

Nessa época eu me preocupava cada vez mais com nosso futuro. Havia deixado as namoradas de lado e só queria saber de trabalhar. Via as necessidades por que minha família passava e sabia que como o primogênito deveria buscar uma solução para a situação em que vivíamos.

Pulemos pois no tempo e avancemos o relógio.

Minha irmã mais velha casou-se com um filho de um industrial e eu fui morar com eles durante uns tempos. Parti em busca de serviço e de condições melhores de vida, para mim e para os meus familiares. Essa cidade ficava distante da casa de meus pais, uns 790 quilômetros, em outro estado.

A cidade era enorme. No começo me assustei, afinal só havia morado em pequenas cidades, que quando muito tinham 20 mil habitantes. Agora me pegava em meio a grandes prédios, em uma cidade metropolitana, com grande número de carros e também perigosa, muitos assaltos e outros crimes. Aos Dezoito anos entrei pela primeira vez em um cinema.

Trabalhei em uma oficina de latoaria onde o dono era conhecido do meu cunhado. Conheci ali gente muito simples, mas que agiam de um modo estranho. Sempre que chegava uma turma de amigos, todos motoqueiros, o dono me mandava para os fundos, no quintal, tirar peças, limpar ou organizar. Eu, na inocência, ou na ingenuidade própria de quem nunca viveu em meio a artimanhas e coisas tais, nunca dei por nada de errado. Até que um dia...

Eu estava sozinho na oficina, o serviço era pouco, então subi até o bangalô que havia sido construído dentro da própria oficina para ser o escritório. Lá em cima, comecei a fuçar em busca de revista de mulher pelada, mexi nas gavetas e em vários locais, sempre procurando deixar exatamente como estava antes de mexer. Em dado momento vi o saco de bater, aqueles sacos de treino para os lutadores, pendurado no teto e me deu vontade de executar uns chutes que eu vinha praticando na casa do meu cunhado. Dos chutes parti para socos. Era a minha época de leituras sobre filosofia oriental e coisas tal. Então olhei ao lado e vi outros sacos de bater. Estranho, pensei comigo e fui verificar o que havia dentro... será que era mesmo areia? Parecia tão fofo... não era areia, eram umas folhas secas, parecia folha de mandioca... mas não era. Então minha mente começou a trabalhar.