MAIS UMA VEZ... PARTIR

MAIS UMA VEZ... PARTIR

Antônia Thereza de Almeida Miguel, jovem ainda, beirava os vinte e cinco anos, mas no semblante o ar de quem muito já vivera.

Com os olhos marejados de lágrimas, tentava demonstrar uma firmeza que há muito ameaçava deixá-la, enquanto ajeitava na surrada sacola de retalhos a última peça de roupa que lhe cabia por direito. Vestes humildes que lhe haviam custado infinitas horas de trabalho duríssimo na labuta de ceifar trigo sob um sol impiedoso ou neve enregelante que lhe adoeciam as juntas. Estava de partida. Deixava definitivamente a casa paterna, ou melhor, a casa materna, pois, o pai há muito se fora.

Em uma das mãos a sacola, na outra a filha de quatro anos, fruto proibido que também lhe pertencia de fato e de direito. No olhar um adeus à velha mãe que teimava em virar-lhe as costas. O gesto, a primeira vista, parecia uma severa reprimenda aos desatinos da filha, mas a alma só fazia esconder o sofrimento. Em ambas a dor da saudade que jamais findaria.

Antônia saía da Freguesia de Mesquitela, na Serra da Estrela em Portugal, destino, Brasil. 1912.

Na algibeira apenas fome e amargura. Angustiada aguardava o vapor que partiria de madrugada, levando em seu bojo imensa leva de imigrantes desesperançados com a pátria, com a miséria e com a sorte. A filha Laurinda dormia inocente aconchegada ao seio entre xales e mantilhas desgastadas pelo tempo. Um frio glacial dominava aquela época do ano, principalmente ali, na beira do cais junto ao porto de Lisboa aonde a viajante chegara há quatro dias...

Da amurada do vapor que se afastava do atracadouro, Antônia contemplava a magnífica capital lusa ficando para trás. O casario branco, os velhos sobrados recém caiados, as lojas de comércio multicoloridas, tudo emoldurado ao fundo por magníficas parreiras e centenas de pés de oliva salpicados de neve esplendidamente branca. Esse quadro, realçado pela melancolia, se estampava profundamente nos olhos da imigrante. Quanta saudade já lhe corroia o coração e o viver.

Do outro lado, o imenso oceano verde, encrespado pela brisa da manhã desafia a imaginação dos que partem. Mãe e filha abraçadas pela tenra esperança estremecem pela incerteza do porvir. O apito rouco e estrondoso da desgastada embarcação se despede da amada pátria e desperta a velha senhora. Dona Antônia com a cabeça recostada ao seio da filha entreabre os olhos e se dá conta da distância dos fatos que tão claramente a visitavam. Seus olhos mais uma vez ficam marejados. Estava novamente de partida. Destino, eternidade. 1972.

Claudio De Almeida
Enviado por Claudio De Almeida em 28/04/2008
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