3X4

O deboche esculpido no semblante daquela mulher me irritava. Já havia explicado duas vezes a minha situação e ela continuava com aquele risinho amarrotando as fuças. Eu apenas queria tirar uma foto três por quatro. O que tinha ela a ver com o meu pescoço torto? Tirasse e foto e pronto. Ela teria inclusive uma história para contar quando chegasse em casa: “Hoje um sujeito com distonia cervical foi bater uma foto. A cabeça dele tava mais inclinada que a Torre de Pizza”.

— Pisa – corrigi.

— Que aconteceu com o Senhor?

Preferi a omissão dos detalhes. Como explicar a uma mulher que minutos atrás chamara a Torre de Pisa de “Torre de Pizza”, barbaridade cultural por mim reproduzida no seu diálogo imaginário com a família na mesa de jantar, que eu sofrera uma contratura muscular no pescoço enquanto lia Borges deitado no sofá em pleno sábado de carnaval? O próprio ortopedista duvidou dos fatos. Em sua mente intoxicada por lugares comuns, creditaria que o torcicolo proveniente da contratura havia sido obtido ao virar o pescoço para contemplar alguma bunda de mulata. Eu apreciava traseiros achocolatados, como também curtia Borges. “Nem todo policial lê apenas livros de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle, Doutor”. Um neurologista diagnosticou a verdadeira enfermidade

— Vai ficar torto mesmo. Nem ajeitando a cabeça dá. Outra coisa. Essa camisa branca vai ter que trocar. Branquelo do jeito que o senhor é, e vestindo claro assim, quando bater a foto vai sair um fantasma. Fantasma da cabeça torta.

Não conteve o riso. Engoli o desaforo refletindo que para determinadas pessoas, o racista é sempre o outro.

— Tira assim mesmo – decretei.

Minha irritação vinha desde a véspera quando o técnico do hospital com gentil falsidade me informou da impossibilidade em completar o exame de ressonância magnética, pois a máquina não conseguia captar a área do pescoço devido a torção. Em verdade, a fúria represada tinha outros antecedentes: colegas de trabalho zombando pelas minhas costas. “Quasímodo”, “Corcunda de Notre Dame”, “Tortinho”

A mulher que me atendera diante de computador finalizava as fotos. Na companhia de uma balconista da loja, riam e, vez por outra, olhavam em sincronia para mim, como a confirmarem a deformidade que a tela estampava diante dos seus olhos. Minutos depois, aquela que me chamara de branquelo foi a meu encontro, entregando-me oito reproduções da minha cabeça pendendo para o lado esquerdo. Contemplei as pálidas imagens imortalizando em três por quatro a caricatura de atração de circo de horrores em que me transformara. Imaginei os imortais da Academia Curralinhense de Letras reunidos em volta da minha ficha de cadastro como membro correspondente da Instituição gargalhando e trocando afiados comentários: “Como fomos aceitar um poeta de cabeça torta?”, “Mas Castro Álvares, expoente máximo de Curralinho, não tinha um pé!”, “Ousa comparar o poeta-mor com este reles aleijão?” “Tolouse-lutrec era aleijado.”, “Contudo pintor, não poeta.”

Súbito, os miolos vomitaram a vingança. Aquelas duas e os imortais de Curralinho que se fodessem.

— Moça! Moça! – Chamei — Não gostei das fotos. Vamos tirar outra.

— Vai ter que pagar de novo.

— Sem problemas.

— E se sair mais torto ainda?

— Tiramos mais uma vez.

Ela me ajeitou na cabine de fundo branco e se posicionou de pé do lado de fora. Pela janela da cabine, mirou a câmera digital e em deboche, falou

— Olha o passarinho...

Na DP, recebi colossal esporro da Delegada de plantão. Como ficaria a reputação da polícia com um dos seus inspetores acusados de atentado ao pudor?. Ela andava de um lado a outro da sala, sacolejando diante de mim uma bunda torneada por debaixo do vestido apertado. Não era uma bunda de mulata, todavia interessante de se contemplar. Nas mãos, as fotos que seriam anexadas ao BO, mostravam minha trolha, glande avermelhada, a exemplo da cabeça de cima, pendendo também para o lado esquerdo. A fotografa assustara-se quando eu abaixara as calças e automaticamente registrava o momento. Depois de quinze minutos de ininterrupto sermão, a Delegada esgotou o repertório de reprimendas e sentou-se diante de mim perguntando.

— Como está seu pescoço?

— Ainda inclinado.

— Você quer dizer nas originais. Não nessas que eu tenho em mãos.

Soltou um riso gostoso, mostrando os dentes alvos. Agradeci a Deus e ao Governador do Estado pelo concurso público que trouxera para polícia uma nova geração de delegados. Em especial as mulheres, jovens lindas, educadas, portando senso de humor.

— Esse boletim de ocorrência vai ficar mofando por ai. Não se preocupe. Tem feito fisioterapia?

— Religiosamente – respondi.

— E as fisioterapeutas? São bonitas?

— Algumas sim, outras nem tanto.

— Olha que eu vou ficar com ciúmes – brincou a Delegada.

Contemplei aquela gostosura em forma de lei constituída diante dos meus olhos. Sorri insinuante. Achei que o comentário dela apontava para o “começo de uma grande amizade”. Nem liguei quando ela, discretamente, guardou na sua bolsa uma das oito fotos do meu falo, caprichosamente enquadrado pela mocinha da loja de revelações. Pelo andar da carruagem, a Delegada estava prestes a conhecer a segunda cabeça torta do meu corpo, ao vivo e cores.