MEU PRIMEIRO AM0R

Meu Primeiro Amor

Conto Poético

Eu estava com pouco menos de 17 anos de idade, mas ainda não havia encontrado quem se encorajasse a me conquistar, o que, na época, era um caso preocupante, principalmente para as nordestinas que, nesta idade, já estavam casadas ou em vias de chegarem ao altar.

Trabalhava numa Casa de Saúde para doentes nervosos e mentais, com idade aumentada, é claro, para conseguir a colocação, já difícil naquele tempo. E tudo começou quando telefonei para um Banco, hoje extinto, e me atendeu um cavalheiro com voz sonora, sério e engraçado ao mesmo tempo. Elogiei sua voz musical e sua desenvoltura e ele se "derreteu" todo.

Logo, como todo homem curioso ou conquistador, quis saber a minha vida em poucos minutos. E foi primeiro "bisbilhotando" os meus dados pessoais... Contudo, mais perspicaz , como em geral toda mulher o é, e ao mesmo tempo boba, desajeitada, comecei por onde poucas garotas da minha idade começariam...

Pausadamente perguntei qual a sua cor? E ele gaiatamente disse: - minha cor de preferência ou a cor da minha pele?

Desconsertada, brinquei: - as duas e por que não? E ele, a de preferência é azul... a da pele café com leite... E prosseguindo com a brincadeira, insisti: - mais leite ou mais café? Mais leite, respondeu... E você? Perguntou-me! E eu esticando mais a conversa disse: - eu sou café sem leite... E o engraçadinho como se tivesse a maior intimidade comigo: - é café forte ou fraco? E eu em tom de galhofa: fraquinho, fraquinho...E como dois irresponsáveis que ficam brincando em hora de expediente, continuamos proseando.

De repente, ele rindo, falou em tom mais baixo: - não quer se encontrar comigo para conferirmos as cores das nossas peles? E eu, toda assanhada: claro... E dois dias depois lá estávamos os dois enfrentando uma tempestade capaz de molhar até os nossos ossos.

Para falar a verdade, não dava para conferir coisa nenhuma porque só estávamos com os rostos descobertos... Mesmo assim, me encantei com seu tipo físico, com seus traços fisionômicos e, principalmente, com o seu cavalheirismo, às vezes exagerado.

Trocamos algumas frases carinhosas, elogiosas e muitas outras " osas " e, por culpa do mau tempo, logo depois de marcarmos um novo encontro, fomos dormir... (cada um na sua casa, é claro)

Gustavo, rapaz comportado, ingênuo e bem intencionado, demonstrando o seu cavalheirismo, me levou, todo feliz, para conhecer a sua pequena família, a mãe e o padrasto, que por acaso estava ausente, sem se dar conta de que estava me entregando "de bandeja" para a sua mãe, dona Amélia, (que de Amélia não tinha nada), mulher severa e dominadora que esperava desesperadamente ver seu único filho casado com uma francesa nascida em "berço de ouro".

E quem ele levou a tiracolo para apresentá-la? Uma garota raquítica(para a época, quando as mulheres eram gordinhas), e, ainda por cima, da cor de café sem leite.

Dona Amélia, mulher culta e bem nascida, "rodou a baiana" e sem fazer a menor cerimônia foi logo me perguntando: - Você pensa que tive meu filho e o eduquei nos melhores colégios para entregá-lo a umazinha qualquer? Ai que susto! Pensei que ia desmaiar... Senti arrepios, enjôo, as pernas tremiam, a língua parecia presa na garganta... parecia que a sala estava rodando em minha volta.

Para quem estava debutando em namorico, achei que a dona Amélia pegou pesado e fui saindo muda como entrei, quando o Gustavo segurou no meu braço, me pediu para ficar um pouco, sob o olhar mortífero da mamãe.

Depois de me instalar numa cadeira, foi a hora de encarar a fera...

Respeitosamente e sem alterar a voz disse com certo tom de autonomia: minha mãe, agora é a minha vez de falar... Se você já disse tudo, agora, por favor me escute. Roberta não é uma mulherzinha qualquer... Roberta, repetiu pausadamente, é a garota que eu escolhi para ser a mãe dos meus filhos... É com ela que quero viver o resto da minha vida, você aceitando ou não.

- Você escutou, dona Amélia

Ponha na sua cabeça, minha mãe, que o mundo não gira em torno de você, e eu faço parte do mundo...

- Eu sou um homem livre, solteiro desimpedido, e vou me casar com quem eu quiser... E se você aprender a gostar da Roberta, vai ser ótimo para todos nós...

- O que você pode ter contra uma garota que nem conhece direito, minha mãe? isto é o maior absurdo que eu já vi em toda a minha vida!!!

Por que não tenta ser feliz e deixa que eu seja também?

E quase sem uma pausa para respirar, disse: - Eu não sei como você, uma mulher educada em colégios de freiras, culta, bem aceita pela sociedade em que vive, tem coragem de ofender uma garota inofensiva, que nem pode entender o motivo desta sua atitude constrangedora...

- Mesmo que você tente me impedir, eu vou lutar pelo que acredito...

- Por que você não me deixa ser eu mesmo, minha mãe? - Deixe que eu seja dono dos meus sonhos, da minha vida...

Eu não acreditava no que estava ouvindo... Como aquele maluco que mal acabara de me conhecer havia me escalado para ser mãe dos seus filhos, se nem sabia se eu aceitaria desempenhar a função que estava me impondo.

Quando, meu Deus, dona Amélia iria permitir aquela mistura de pouco leite com café forte ?

Ela estava tentando engolir o seu ódio quando, de repente, como uma desequilibrada mental, chutou a mesinha de centro espalhando revistas e jornais para todos os lados e sentenciou:

- Se você tiver um filho com essa aí, eu deserdo você! Eu não aceito neto da cor de café.

Conhecendo o gênio da "matriarca", como conhecia, ele disse: - com você, minha mãe, não dá mesmo para argumentar, mas, me deserdando ou não, desta vez não vou mais aceitar palpite seu nem de ninguém.

Dizendo isto, segurou—me mais uma vez pelo braço e saímos, como se saíssemos de um manicômio.

Que barra! Pensei ainda me recompondo do susto que a "futura sogra" havia me dado. Não foram só as palavras que me ofenderam. Seu tom de voz me apavorava muito mais... Ela rangia os dentes como se quisesse me estrangular e sua cólera era tanta que parecia que estava possuído por um espírito do mal... Ai foi que percebi o quanto dói conviver com um

Contraste

Se acaso me perguntam como estou

- se trago na alma alguma cicatriz,

respondo que não sei como é que vou,

mas sei que vou tentando ser feliz ...

Que sigo, passo a passo, a diretriz

que o destino vilão me reservou,

impondo tudo aquilo que eu não quis,

negando o bem que a vida me legou.

Malgrado todo o mal que me aconteça,

procuro convencer minha cabeça

a não ouvir a voz do coração.

E após os desenganos me refaço,

amenizando os males do fracasso,

com doses de esperança e de ilusão .

Quando já estávamos atravessando a rua, dona Amélia, ainda possessa, colocou a cabeça grisalha na janela e falou em altos brados: -"só se passar por cima dos meu cadáver você vai se casar com ela, ouviu Gustavo ?

Coitado do Gustavo, que havia me conhecido através de um telefonema... Devia estar pensando: - maldita a hora em que atendi aquela droga de telefone... Estava lívido, nem pestanejava. Talvez em seu subconsciente estivesse uma pergunta: - Como a minha mãe pode tratar tão mal uma pessoa que nem conhece?

Sem planejarmos, entramos no primeiro cinema dos poucos que existiam na cidade. Silêncio...

Entre nós reinava um silêncio mortal... O meu, por ter provocado aquela reação na dona Amélia... O dele, por ter, inconscientemente, me feito passar por todo aquele vexame... Enfim havia um clima todo propício para que interrompêssemos aquele namoro, se é que já era um namoro.

Eu fui a primeira a falar, embora ainda estivesse abalada e triste, mesmo depois de ter assistido um filme maravilhoso, “O Direito à

Vida ", e disse: - eu ainda não tenho estrutura psicológica para enfrentar uma quarentona amarga e preconceituosa. E acrescentei, em tom amigável: Gustavo, não vale a pena contrariar a sua mãe...

E, como se já estivesse esperando um neném, falei com voz de grávida manhosa: - E se o nosso filho nascer da cor de café sem leite, você não tem medo de ser deserdado?

Gustavo riu, riu não, deu uma bruta gargalhada, " daquela que canta e, de longe, se escuta o eco "... - Eu não conhecia este lado seu, disse cheia de intimidade!

Claro, disse ele... Mal nos conhecemos, se lembra? Deixe passar o tempo que vou me desmascarar... Você me ajuda? Responder o que? O que ele quis dizer com " vou me desmascarar "?...

Naquela noite não dormi. Parecia que havia levado um choque elétrico e nada me fazia esquecer a cena do encontro do leite, do café e do vinagre. ( a dona Amélia que estava sempre azeda )...

No dia seguinte, já meio refeita, contei a uma amiga e confidente o que se havia passado na "casa da sogra " e ela, mais experiente do que eu, deu-me as coordenadas: - deixe que este tal de Gustavo se enrosque com a mãe, se pretender ficar com você... " esqueça a velha ". E foi isto o que eu procurei fazer.

Sem tomar conhecimento do que estava se passando na Rua Soares Cabral, residência da dita cuja, eu fingia que estava tudo bem e o Gustavo mesmo ouvindo os constantes desaforos de sua mãe, apesar de toda a pressão de que era vítima, não arredou pé. E, repente, percebemos que o tempo havia passado depressa demais, estávamos namorando, (namorando mesmo), há quase 6 anos.

Gustavo, mesmo trabalhando, concluiu o Curso de Comunicação Social, se transformou num exímio jornalista e se enveredou pelos caminhos de roteirista cinematográfico... ficou mais liberal e infinitamente mais sociável e apreciador das badalações noturnas. Era difícil aceitar com tranqüilidade sua repentina e inaceitável

Mudança ...

Mudaste tanto ... e agora reconheço

que nada mais eu sei da tua vida ...

Porque na agenda nem teu endereço

deixaste, como herança, na partida.

Não quero condenar teu desapreço,

nem perguntar porque fui preterida,

porém, se houver um novo recomeço,

posso recomeçar de fronte erguida.

Não dei motivo à tua ingratidão,

e nunca fiz sangrar teu coração

e nem te deixei na alma cicatriz ...

O que tentei mostrar , conscientemente,

foi que o meu grande sonho, simplesmente,

é ser feliz e te fazer feliz.

Eu já havia também concluído o Curso de Comunicação Social, mas pretendia ainda encarar uma Faculdade de Direito.

Dona Amélia não dava uma folga ao Gustavo e queria porque queria que ele encontrasse a francesa de seus sonhos (dela) e não escondia de ninguém que eu estava atrapalhando a vida de seu filho e, de certo modo, cortando a sua sorte, mas eu sabia que suas atitudes tinham um só nome:

Preconceito

Diz que nunca me quis e não me quer

e que estou muito aquém do seu desejo,

mas não encontrará outra mulher

que o veja como HOMEM , como eu vejo.

Esqueça a minha falta de traquejo

e diga tudo o que você quiser ...

Porque, mesmo sentida, sinto pejo

de revidar o que você disser.

Malgrado a nossa tez da mesma cor

e não haver visível desamor,

seguimos diferentes diretrizes ...

Porque o amor que lhe dei, o meu respeito,

foram vencidos pelo preconceito :

um mal que enche o Universo de infelizes ...

Eu fui ficando impaciente e, porque não dizer saturada, com as grosserias que dona Amélia me fazia, quando casualmente nos encontrávamos e, num ato de coragem e covardia, me mudei para um Estado distante sem deixar rastros.

Foi muito difícil deixar tudo para trás, mas foi o melhor que eu poderia fazer por mim, pelo Gustavo e por dona Amélia que tanto odiava a minha "brasileirice" e a minha pele cor de café...

Dez anos depois nos reencontramos, por acaso, mas já era muito tarde. Eu estava casada, bem casada, e o Gustavo divorciado de uma garota de pele cor de café forte, de um casamento que durou apenas três anos, para maior alegria de dona Amélia, a preconceituosa, que via ressurgir a esperança de conseguir a nora francesa dos seus sonhos.

Anos depois, quando eu já estava viúva, novamente nos encontramos, por acaso, e percebemos que ainda restavam muitas recordações do nosso passado que precisavam ser reavivadas. E por que não reavivá-las se o destino resolveu nos dar mais uma oportunidade? Mas, lembrando do que havia acontecido, a mágoa ainda latente falou mais alto e rememorei,

Esquecimento

A todos você diz que fui culpada

de o nosso amor não ter sobrevivido,

porque eu não quis ficar escravizada

a juras mentirosas sem sentido ...

Muito embora eu me sinta injustiçada

e parta com meu coração partido,

não vou pedir que siga a minha estrada

para reavivar o amor perdido.

Tudo sobre você tinha guardado

até o dia em que virei passado,

quando você me impôs tudo esquecer ...

E intimada a apagá-lo da memória,

grafei no coração a nossa história,

porém meu coração não sabe ler !

Agora, confesso que me assusta reviver um sentimento que me parecia impossível de voltar a se manifestar, em razão dos abalos sofridos ao longo do tempo, mas Gustavo, como sempre, atencioso e persistente, no afã de reconquistar o que sempre sonhou, segundo ele, carinhosamente está tentando me ajudar a vencer os velhos fantasmas que ainda rondam a minha mente.

O mais incrível é que, até hoje, quando lhe perguntam por que não tem filhos, com o sorriso mais maroto do mundo Gustavo diz, tentando encerrar o assunto: "não tenho filhos porque nos perdemos da mãe deles antes que chegassem ao mundo" e, por isso, deixei para realizar meu sonho de paternidade, talvez, numa outra reencarnação.

Eu também não tive filhos, e agora já é muito tarde para sonhar com a maternidade, mas quem sabe eles virão, também, numa outra reencarnação, num reencontro de duas almas, quase gêmeas, separadas pela intolerância humana?

Agora que dona Amélia está desfilando seu ar de superioridade num plano superior; que estamos novamente solteiros, voltamos a ser amigos, deixando nossas respostas de amor para o futuro, que só a Deus pertence.

E, apesar de todos os anos já passados tenho certeza de que estou preparada para, no momento certo, tentar dar continuidade à história conturbada, mas infinitamente bonita do Meu Primeiro Amor.

Maria Nascimento Santos Carvalho

Maria Nascimento
Enviado por Maria Nascimento em 27/05/2008
Código do texto: T1008313