PROSA MITOLÓGICA - CONTO 06 - CARONTE

CARONTE

Lá estão eles novamente. Sempre igual! Todos precisam atravessar para a outra margem, esse é o meu trabalho. Os choros cessam quando encosto a barca, todos me olham espantados. Faço isso há tanto tempo que não ligo para os lamentos e queixumes. Sigo um padrão estabelecido quando Gaia ainda era jovem: ordeno que façam uma fila, eu mesmo fico á entrada da barca, todos têm de pagar o óbulo, uma moeda de prata. Aqueles que por algum motivo não podem pagar a travessia estão condenados a ficar ali mesmo. Só posso atravessar os que pagam.

Com a barca cheia, tomo posse do timão e indico para que peguem os remos, eu só conduzo a barca, o trabalho de remar pelas águas turvas e escuras do Estige é dos passageiros e passageiras.

A viagem começa lenta, como sempre, muitos demoram em pegar o ritmo das remadas, eu preciso ficar gritando, ordenando, ameaçando. Enfim estabelecem um bom padrão e seguimos em frente... Na outra margem o cão de três cabeças – Cérbero - aguarda os recém chegados. Atrás do animal os portões do palácio onde o julgamento será efetuado. Alguns vão para os Campos Elíseos, outros ficarão vagueando no próprio Hades. Isso pouco me importa, quero apenas fazer meu trabalho, cumprir com a minha obrigação.

Sempre há passageiros, Tânatos não descansa nunca, e como conseqüência eu também não.

Nunca tenho tempo para cuidar dos remos, ou consertar o timão, nem mesmo posso cuidar de eventuais danos na barca, não posso parar, meu senhor – Hades - é exigente. Sua rainha, a bela Perséfone, também o é. Por sorte, mesmo após todo esse tempo de uso contínuo, o material permanece em bom estado, portanto é uma preocupação a menos.

Estou nisso há uma eternidade, antes mesmo dos deuses do Olimpo assumirem o controle do mundo, eu já estava aqui.

As vezes acontece alguma novidade. Como quando Héracles desceu do mundo superior para cumprir um de seus doze trabalhos, seu irmão pediu por Cérbero. Eu exigi o óbulo, mas o filho de Zeus, muito mais poderoso, me subjugou, fui obrigado a fazer a travessia de um vivo, suprema blasfêmia. Mas Hades entendeu a situação e não me puniu. Quanto ao intruso ele teve que pegar o cão com as suas mãos nuas, exigência de meu amo e senhor. Sei que ele cumpriu a exigência e levou o animal para o outro mundo, devolvendo-o logo em seguida.

Outra novidade foi o mortal Orfeu. Destemido e profundamente apaixonado pela esposa Eurídice, morta por uma cobra, que a jovem pisou acidentalmente quando escapava do ataque do pérfido pastor Aristeu.

Orfeu desceu aqui, com sua lira. Seu canto repercutiu por todo o Hades, jamais eu escutei uma melodia tão maravilhosa, uma voz que jamais será igualada, seja por deuses ou homens. Até Perséfone se comoveu com as palavras cantadas pelo jovem, e em uma decisão inédita autorizou a volta de Eurídice. Tudo teria sido perfeito, não fosse Orfeu tão prematuro. Ele não deveria olhar para sua esposa até que tivesse atravessado a fronteira do mundo infernal, faltando pouco para alcançar seu objetivo o maravilhoso cantor ousou olhar para trás, na esperança de ver sua amada esposa. A alma de Eurídice foi violentamente sugada de volta, e todo o esforço do jovem foi em vão. Ele ainda tentou, mas dessa vez eu não fiz a sua travessia. As leis e normas do Hades são inflexíveis, ninguém pode violá-las sem arcar com as conseqüências funestas disso.

Ah! Não posso me esquecer do esperto Sísifo. Para que o deus-rio Esopo fornecesse água para sua cidade o mortal contou o destino de Egina, filha de Esopo, raptada por Zeus que ficou encantado com a beleza da jovem.

Como castigo pela afronta, Zeus enviou Tânatos para conduzir Sísifo para o mundo inferior, mas o esperto mortal não só ludibriou o enviado, como também o aprisionou, quebrando a ordem natural das coisas. Por um tempo ninguém morreu no mundo... Estando Tânatos prisioneiro não havia ninguém para aplicar os golpes de foice que ceifam a vida dos vivos. As margens do Estige ficaram vazias, não havia novas almas para alimentar o reino de meu amo e senhor. A minha barca ficou encostada em uma das margens sem utilidade, assim como eu.

Mas o grande Zeus enviou Ares para libertar Tânatos e levar Sísifo para o mundo inferior. Com isso a ordem natural foi restaurada, mas o mortal ainda ousou mais um golpe. Convenceu sua esposa a não lhe prestar os ritos fúnebres e uma vez à frente de Hades convenceu este que deveria voltar para castigar a mulher por essa heresia. Meu amo e senhor autorizou a volta de Sísifo que uma vez mais voltou à vida. E teria permanecido no mundo superior não fosse nova intervenção de Zeus, desta vez o pai dos deuses enviou Hermes, e finalmente o astuto teve seu destino final. Ele fica lá, tentando erguer uma monstruosa pedra de mármore montanha acima, mas toda vez que se aproxima do final de sua tarefa a pedra rola novamente para baixo, fazendo com que ele comece de novo sua infrutífera missão.

Essas foram as situações fora do normal que eu me lembre.

Essa é a minha rotina, transportar almas entre as margens do Estige, não posso atravessar quem não me pague o óbulo, ou não tenha tido os ritos fúnebres, nem tampouco algum ser vivo. Quem eu sou? Sou filho da Noite com o Érebo, sou o condutor da barca dos mortos, me chamo Caronte, e aguardo o dia que vou te conhecer.