A Quinta Parede

E entre as quatro paredes ele se perdia. Vomitando besteiras no carpete, simplesmente não sabia onde estaria da próxima vez. Na última vez que lhe vi, estava vestindo um terno surrado cor de terra e uma calça vermelha vinho, calçava seus velhos chinelos de couro. Andava apressado por entre as pessoas tão desavisadas da vida. E andava e andava e andava... Simplesmente não queria saber de parar em canto algum. Conhecia muita gente, porém vivia só. E, nas quatro paredes, sobrevivia entre o medo de ser só e o medo de estar-se preso. Algum inseto o picara bem no pescoço e ele tentava espremer o carocinho como se fosse uma espinha. Doía muito! Sei que na última vez que o vi foi no verão passado, vestindo-se como eu já havia mencionado. Ele veio ao meu encontro e me entregou um caderninho de couro pequeno e disse para ler logo que ele atravessasse a ponte. Deu meia volta, subiu na mureta da ponte e se jogou. Tentei gritar, eu juro! Mas parecia uma voz inaudível diante da eternidade do trânsito da cidade. Os carros pararam e as pessoas correram para o local na esperança de ver o corpo. Este jazia no fundo do rio...

Voltei para casa chorando. Meu amigo morreu na minha frente, eu tinha visto a morte naquela ponte e isso doeu. Simplesmente não aceitava o fato disso ter acontecido. Joguei o caderninho em cima de minha escrivaninha e fui ao banheiro lavar o rosto, quando voltei, vi que o caderno estava aberto, era devido ao vento que soprara antes de eu entrar no banheiro. A página era uma quase no final e nela tinha escrito algo: "...e nessas quatro paredes vejo meus pecados refletindo meu futuro.". Peguei o caderno e comecei a folheá-lo desde a primeira página. Vi versos ou frases incompreensíveis que nada me diziam. Uma delas era: "...de nada serviu mudar, pois o rótulo ainda é mutante e o produto, o imutável. Se mudo, me perco; se não, me faço de perdido.". As frases sugeriam uma decepção com a vida que, na verdade, se mostrou mais rude. Não era só a vida em si, mas o individualismo que meu finado julgava ter. Existiam linhas em branco e algumas páginas só continham uma palavra aleatória que não mantinham ligação com outras do caderno. Anoiteceu, o sono bateu meus olhos ali mesmo, sobre a escrivaninha...

A noite me trouxe fantasmas. Eu os ouvia repetirem tudo que eu havia lido no caderno de meu amigo. Tudo! De repente, estava entre quatro paredes de cor bege e sem mais nada a não ser... A não ser, escuridão!

As quatro paredes vão se fechando mais e mais, eu sinto alguém perto. Minhas pernas vão amolecendo, meus braços ficam dormentes; minha cabeça lateja, meu corpo dói. Grito por socorro e acabo escutando eu mesmo dizer que não há nada ali fora. Sinto cheiro de cigarro... Olho para o lado e vejo um poste e uma prostituta escorada nele, ela fuma ativamente e parece triste. A maquiagem desce-lhe o rosto e seus seios estão nus. Eu apareço em meio a escuridão com toda a orne que um galante precisa ter. Amo-a com devoção e depois a mato com mais devoção ainda! Estrangulo-a e seu pescoço fica pequeno diante de minhas enormes mãos. Volto-me para ela e vejo sangue escorrer de meus pulsos. Não agüento! Levanto-me e saio correndo... Corro pela noite e vejo o que só pode ser eu, me acompanhando. Eu mato, eu traio e eu morro por cada pecado. Agora vejo meu amigo morto ao meu lado e ele me aponta uma luz no fim daquela escuridão. É a porta de saída das quatro paredes. Meu amigo me diz que é a quinta parede, a que salva!

Vejo-me na ponte e estou com o caderninho nas mãos. Ando desorientado e de quando em quando, vultos me passam correndo. Eu sou o homem-lesma. Há um menino vendendo chiclete à mureta da ponte. Ofereço-lhe dez tostões para ele segurar meu caderninho, pergunto-lhe que dia era hoje, ele diz que é 19. Pego pela memória: já faz uma semana que meu amigo morreu. Vultos continuam a me atravessar, chego na mureta e pulo...

Silêncio...

Só as sirenes e os murmúrios uníssonos. Vejo meu corpo morto e meu amigo está no meu lado. Ele levanta os olhos para ponte lá em cima e diz com voz bem acentuada:

- Entre quatro paredes, o homem se torna a fera; e a quinta, se torna homem.

Caminhamos ao longo do rio, rumo a qualquer lugar...

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 18/07/2008
Reeditado em 30/09/2008
Código do texto: T1086925
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