A Pipa


         Eu mesmo as fazia. Com as talas retiradas do dorso e dos talos das folhas do coqueiro-anão eu lhes dava formas as mais diversas: coruja,papagaio, relógio, cruzeta, octogonal, pandeiro, e outros tantos tipos que me vinham à mente.

Partindo de um pequeno carretel,
meus bilhetes de amor, as crenças minhas,
o vento alçava aos céus, correndo as linhas
das coloridas pipas de papel.

       O interessante é que eu as montava, vendia, trocava e as destruía, de raro em raro, quando das realizações de torneios, sempre em três formalidades: altura alcançada, tempo de “dormida” e mata-mata. Na primeira era considerado vencedor aquele que mais linha desse à pipa, chegando-se, nessa modalidade, ao limite de três carretéis. Na segunda vencia o que permanecesse por mais tempo com a pipa imóvel nas alturas (“dormindo”). A terceira, bastante dispendiosa e sempre resultando nalgum problema com a fiação elétrica, era o mata-mata. Muníamos o rabo da pipa com uma gilete e depois de uma hora de empino começávamos a luta, cada um tentando cortar a linha do adversário que, além da perda da pipa, era obrigado a entregar àquele que a derrubara, dois carretéis de linha. Quem permanecesse no ar, no final, recebia um carretel de linha de cada concorrente e mais dois daquele que havia derrubado por último.
       Nessa modalidade, Dado era o campeão. Ninguém a ele se igualava no manejo das pipas, que em suas mãos davam voltas quase suicida no ar, faziam cumprimentos seqüenciados, subiam ou desciam numa velocidade invejável, e eram infalíveis na mortífera rabeada. Por várias vezes, com pipas feitas por mim e por ele velejadas, venceu-me no mata-mata. De prima ou na réplica, que por vezes nos concedíamos. Na verdade a minha participação nesse tipo de disputa era quase forçada. Apenas para não fugir aos desafios críticos da turma, principalmente os de Evilásio, Guilí, Nebal e Remo:
     - Liminha não confia nem nas pipas que faz!
     - Ele tem medo de perder para ele mesmo!
     -Liminha não corta nem as unhas das mãos, quanto mais a linha de uma pipa!
     Esse enfezamento persistia até que eu me decidisse em participar, às vezes sendo sorriso, às vezes de cabeça quente, pronto para a briga. Como no dia em que fui vencedor, ao derrubar a pipa de Dado. No mesmo instante ele avermelhou as bochechas e partiu para mim, de dedo em riste:
     - Foi de propósito. Você me vendeu uma pipa pesadona, de cabresto cabeceador e pouco rabo, somente para ter a petulância me vencer!
     - Peraí, Dado! Você foi quem escolheu a pipa, experimentou-a, fez até “dormida” com ela, e agora me vem dizer que era defeituosa! Você não sabe é perder!
     - Eu não sei perder? Você é que não sabe ganhar! Se soubesse me vendia essa pipa, ia buscar outra e me concedia a revanche!
     - Só se for agora!
     - Quanto quer por ela?
     - Seis carretéis de linha urso, número dois. – estabeleci um valor alto para que ele desistisse da contenda. Era o tipo de linha mais caro que existia e o que mais se prestava para esse tipo de competição. Além do mais, não esquentava nem feria o dedo.
     - Não sei você, mas eu topo. Vou lá em seu Luca e venho já,
     - Também não sei você, mas eu não fujo de aposta. Vou pegar outra pipa. Diz a ele, Remo, que eu já volto.
     Era sempre assim: quando discutíamos de veras, não mais dizíamos o nome um do outro. O tratamento passava a ser na terceira pessoa até que o tempo cuidasse de se fazer esquecido.

Nossas brigas, amigo, antigamente,
hoje vejo: jamais foram de veras.
Foram tocaias, simplesmente esperas
que a saudade tramava contra a gente.

      Fui, rapidamente, em casa, escolhi uma coruja ainda não velejada, de ponta oval e asas corcovas, ajeitei-lhe o cabresto, deixando-o mais folgado, coloquei na ponta da cauda uma gilete-azul, uma “blue-blade” novíssima, retirada dos pertences de Joãozinho, meu irmão mais velho, e toquei para a praça.
     À minha espera, além de Edvaldo, estava a turma quase toda, por ele chamada, e, para surpresa maior, Cidinha, minha primeira-futura namorada!

Minhas idas e vindas na calçada
em frente à casa dela, auge do gozo!
Eu falava com ela, silencioso,
e ela falava sem me dizer nada. 

     Quer dizer: nós nunca havíamos tratado de namoro. Tampouco nos havíamos falado. Eu apenas passava, constantemente, em frente à sua casa, numa rua paralela à minha, para ver os seus olhos cor de mel e o sorriso de seus lábios de maçã. Nunca prestara atenção se ela olhava ou sorria para mim, pois era eu quem a procurava nos olhos, na boca, na pele rosada, nas veias da cor do céu traçando linhas suaves em seu pescoço esguio, no colo aberto à brisa da manhã, ao vento brando da tarde.
E lá estava Cidinha sentada no banco da praça! A boca de maçã sorrindo doçura, os olhos cor de mel adulçorando o chão, a rua, o claro-cinza das nuvens, a me fazer esquecido, por instantes, da inevitável revanche:

Por que chegaste agora, amor primeiro,
quando dedico à luta todo o afã,
se me perco em tua boca de maçã,
em teus olhos de mel, nesse teu cheiro?

Por que chegaste agora? Timoneiro
das lufadas do vento da manhã,
podes volver meu vôo - guardiã
dos meus volteios por teu corpo inteiro.

Eu sei que não há nada de importante,
no vento em que trafego esse levante
de colorida pipa de papel.

Mas temo que eu me perca em vôo errante,
o céu sem ver, só vendo a mim diante
teus lábios de maçã e olhos de mel.

     Recebi os carretéis das mãos de Remo, atei o primeiro ao cabresto da coruja, sopesei-a, testando a centralização, e olhei, de soslaio, para Dado - que já havia empinado a minha pipa campeã e lhe estava dando linha para ganhar altura. O sol ainda não atiçara o calor, o vento estava supimpa e a vida era bela nos olhos de mel de Cidinha.
     Remo veio me ajudar no empino. Correu com a pipa até certa distância, levantou-a no alto das mãos e a largou, enquanto eu a arremetia com puxões intermitentes na linha. Num instante ela ganhou impulso. Estava soberba e flamejante, refletindo raios de sol nas faixas de purpurina! Senti, de repente, o cheiro intenso de flores, das mais diversas e perfumadas flores, pressenti Cidinha junto a mim bem antes de lhe ouvir a voz:
     - Linda a sua pipa! Cheia de brilho e de cores!
     A presença de Cidinha, a graça de ouvir pela primeira vez o canto da sua voz a mim dedicado, de sentir o contato de seu corpo vez em quando roçando o meu braço e, num repente, a sua mão em meu ombro, fez-me esquecer, por decisivos segundos, do adversário:
     - Cuidado com a outra pipa! Ela quase se enrosca na sua! 
     Por um triz não perdera a disputa! Recolhi uma braçada de linha, soltando-a de vez e me safando do rabeio tramado por Dado. Agora eu estava ligado apenas ao posicionamento dele, aos volteios das pipas, e à suave pressão dos dedos de Cidinha em meu ombro. Da turma em volta ouvia apenas o zunzum continuado e gradativo.
Voltei a recolher a linha, dessa feita em duas braçadas, enquanto Dado fazia o mesmo, só que de forma mais rápida. Ouvi o ruído dos seus passos para mais perto de mim, os elogios de Cidinha à rapidez com que ele enrolava o carretel, e a sua gargalhada presunçosa esbanjando vaidade. Num átimo notei a bobeira por ele praticada! Sustara o movimento da pipa, agora parada e quase encostada à minha, num nível um pouco mais alto! Soltei, de vez, a linha que havia recolhido, ao tempo em que a puxava para a direita e sentia nos dedos a vibração do cerol. Roçara a pipa de Dado! E como vibrei quando assisti a sua degola, quase que junto ao cabresto! E a sua dança de adeus nos braços do vento, enquanto a linha se derreava sobre a fiação e os telhados, até se perder de vista em meio ao verde de não sei onde!

Colorida de tons os mais diversos,
desejosa de luz, de mais altura,
por quê quem te criou, ó criatura,
em lanços morrediços e perversos, 

te fez refém de ventos vãos, dispersos,
a te levar do Olimpo à sepultura,
para depois cantar-te a formosura
do teu vôo final, refeito em versos?

Se entre nuvens nimbosas te abrigaste,
que fizestes das cores que levaste,
dos lisos talos, das lustrosas ripas?

Ou será que nos céus onde voaste,
há lugar reservado, o quanto baste,
para o descanso santoral das pipas?

     Calmamente fui recolhendo a coruja corcova, até que me coroasse e se pusesse a dormir no embalo da minha mão. Os olhos de mel de Cidinha iam do céu à terra e da terra ao céu, tornando divino e profano, profano e divino, o sorriso da sua boca de maçã e o resvalar dos relevos de seu corpo de encontro ao meu.
     Tentei tomar-lhe as mãos. Ela se fez esquiva. Persisti no intento e mais uma vez ela fugiu ao meu contato, enquanto mantinha no rosto bonito o sorriso esquisito de quem quer ser amada sem ceder, sem se dar, sem conceder mais nada a não ser o sorriso esquisito no rosto de fada de riso bonito. E a sorrir se postava, fugia e voltava à minha mão estendida, e a deixava pendida, e sorria e dançava:

Quando as mãos não se encontram nem se dão
em outras mãos, num toque comezinho,
é triste ver as mãos de um ser sozinho,
de um ser sozinho é triste a solidão.

Por isso estendo a mão à tua mão,
tentando, ao toque, a troca de carinho,
entrelace ninhal de um passarinho,
despertar ou final de uma ilusão.

A minha mão, talvez, nervosa esteja,
nesse primeiro toque que deseja
e que desejo saibas, de antemão,

que, simplesmente, a minha mão almeja
sair da solidão em que vagueja,
para alcançar o cais da tua mão.

     Uma nova tentativa e nova fuga dissimulada num bailado vivo, num rodopio de saia e braços, a se repetir:
     - Lindo! Lindo! Lindo! – e, voltando para mim os olhos de mel – Adorei!
     Quando percebi os seus passos saltitantes de ir embora, passei o carretel às mãos de Remo, e, num incitamento d’alma, consegui alcançá-la antes que o portão fechasse:
     - Você não quer aprender a soltar pipa?
     - Adoraria! – os olhos de mel parecendo me ver, a boca de maçã aparentando um sorriso somente meu.
     - Amanhã?
     - Só se for à tardinha, por volta das três horas!
     Ainda um tanto temeroso, consegui, afinal, tomar a sua mão e apertá-la de leve. Sorri para ela o meu sorriso tímido de até logo, dei uma meia-volta ao estilo de Fred Astaire, acertei uma topada no ressalto do meio-fio, quase me estatelando no chão, e, sem olhar para traz, voltei à praça e às honras pela vitória alcançada sobre o campeoníssimo Dado – que permanecia à minha espera, de cabeça baixa, riscando o chão com a ponta do conga. Mal cheguei perto e ele foi logo perguntando:
     - Quanto lhe devo?
     - Nada. Essa foi de graça.
     - De graça eu não aceito. Eu dei bobeira, você ganhou, e eu nunca fui de deixar uma aposta pendente.
     - Mas nós não apostamos nada! – retruquei.
     - Não apostamos no dito, mas a revanche foi de veras. Quanto lhe devo? 

     Olhei para Dado, de alto a baixo. O rosto magro, o nariz pontiagudo, os olhos velando a querença de companheirismo e fingindo brabeza, a mão premendo o que restara da linha habilmente trançada no carretel , e atendi à sua pergunta com um sorriso largo e solidário:
     - Deve-me mais amizade. – o que foi bastante para que ele voltasse a ser o amigo de sempre:
     - Que é isso, Liminha? Tu sabes que sou teu amigo indo e voltando!
     Foi a deixa para o abraço, para os apertos de mão, e para historiarmos a disputa, entrecortando-a com ditos jocosos, Juntamo-nos à turma e tomamos o caminho de volta para casa. Ele querendo ser mais solicito do que no comum dos dias e eu pensando nos olhos da cor de mel e nos lábios da cor de maçã da boca de Cidinha.

Eu fui criança e sei que fui preciso
aos instantes de angústia e de fadiga,
calmando as mágoas de uma mãe amiga,
levando-lhe a esperança de um sorriso.

Eu fui criança e adulto de improviso
que ouvia, ao vento, maternal cantiga.
Fui sem maldades, sem maldar intriga
nem pesar nos caminhos que inda piso.

Eu fui criança de pureza pura.
E fui tão puro que na minha jura
sequer fui jura, fui somente arranjo.

Fui criança de oferta e de procura.
Eu fui do Criador a criatura.
Enquanto fui criança, eu fui um anjo!

     À noite voltei ao passeio pela calçada fronteira à casa dela, assobiando “Cielito Lindo”. Sentada no terraço, junto aos pais, estava lendo e escrevendo alguma coisa. Quem sabe um romance e, nele inspirado, uma carta para mim? Por que não? Ela não me sorrira? Não me tocara? Não juntara ao meu os suaves contornos de seu corpo? Não me prometera um novo encontro? Sorri calado, calando o assobio. Fui até à esquina. Voltei mais devagar, arrastando os pés no cimento encrespado da calçada. Sabia que estava acabando com o que restava da sola do sapato. Mas para ser por ela visto, valia a pena. Nem que fosse de relance, na lonjura em que de mim estavam os seus olhos de mel. Ela, no entanto, continuara no mesmo lugar, na mesma posição e no mesmo propósito de ler e escrever. Tossi. Atritei com mais força a pisada. Voltei a assobiar Cielito Lindo, em tom mais agudo, e nada adiantou. Somente os seus pais é que me olharam. Ela sequer desgrudara a vista do que lia e do que continuava a escrever. Fiz outra ida-e-vinda, espirrei, temperei a garganta, bati palmas acompanhando o assovio, e somente os seus pais voltaram a me olhar, a me sorrir e a me acenar boa-noite. Em casa, a primeira cara que encontrei foi a de meu irmão Geraldo:
     - E aí, galã, como foi de namoro?
     - Eu não disse a você que ia casar com ela? – e ante o seu riso irônico: - Falei com ela, ela falou comigo, encostou o corpo no meu, colocou a mão no meu ombro, peguei duas vezes em seus braços, e já marcamos um encontro pgilzara amanhã!
     Pouco me importava que Geraldo risse alto, que contasse tudo a Marcos, que Marcos contasse a Joãozinho, que Joãozinho repassasse para Gilza, que Gilza alertasse Dona Anginha, e que todos me descressem e desacreditassem na concretização de meu sonho. Eu estava amando pela primeira vez e pela primeira vez sendo amado pela musa que elegera dona de meu coração por toda vida:

Amo a chuva que corre na vidraça
trasnparecendo vultos, por pirraça,
amo o futuro do amor presente.

Amo os braços do abraço que me abraça.
Eu amo a vida. E, enquanto a vida passa,
amo abstrata e indefinidamente...

     Deitei-me pensando nela e com ela sonhei a noite inteira. Estávamos empinando pipa no terreno baldio em frente à sua casa, e eu lhe explicava o ritual dos telegramas e a premonição da pipa a cada telegrama que aceitava receber:
     - Você escreve num papel o que deseja saber e o introduz na linha. Se cair no meio do caminho, pode esquecer do sonho. Se ele subir e alcançar o cabresto da pipa, ela o lê e lhe responde por sinais: se ficar parada, dormindo, não há interesse nenhum sobre o assunto; se ela der de cabeça, a resposta é sim; se ela vaguear de um lado para outro, a resposta é não; e se vaguear e cabecear logo em seguida, pode ser que sim ou não.
     Ela sorriu com trejeitos ainda mais puros na pureza de meu sonho, e, tirando um papel do seio e o colocando em minha mão, pediu-me:
     - Passa esse telegrama para mim?
     Quando notou que eu ia ler o que estava escrito, tentou arrancá-lo da minha mão - a timidez corando o róseo suave de seu rosto:
     - Não!Você não pode saber do que se trata!
     Expliquei, então, para ela, que eu era o telegrafista e se não lesse o telegrama não tinha como repassá-lo à pipa para que ela decidisse se queria recebê-lo ou não:
     - Tá bem, leia. Mas eu vou tapar os ouvidos e vou ficar morta de vergonha:
     -“Pipa que está no céu, eu vou casar com Liminha?”. Pronto, já li e já transmiti para ela. Agora vamos ver o que ela responde.
     Fiz um furo no meio do papel e um corte lateral até a borda, inserindo-o na linha. E lá se foi, em sonho, o telegrama que tanto imaginara em tempo real! Num instante ele alcançou o destino, unindo-se a pipa, que, de imediato, começou a cabecear, nítida e repetidamente.
O abraço de Cidinha, a sua voz eu meu ouvido a me dizer “te amo”, levou-me a largar o carretel e a pipa, a jogar tudo para o alto, para me unir ao seu corpo. E comecei a beijá-la na boca, no rosto, no colo, quando, num ímpeto, ela gritou. E o grito me acordou abraçado ao travesseiro, os braços de Dona Anginha me arrastando da cama e a me reclamar da hora.

Acordaste-me mãe, no instante divo
em que brotava o amor num sonho meu,
um sonho que a minh’alma concebeu
e somente em meus sonhos está vivo.

Acordaste-me mãe por um motivo
muito menor, um sonho de plebeu,
o querer que eu consiga, no ateneu,
um futuro melhor, mais seletivo.

De que me serve, ó mãe, esse futuro,
se a musa, que nos sonhos meus procuro,
embora viva, não se fez concreta.

Esse futuro meu , eu te asseguro,
será, ó minha mãe, bem mais seguro,
se musa houver aos sonhos de um poeta.

     Sai para a banca de jornal, onde eu trabalhava, logo que expulso da cama e após a tomada do café torrado em casa, acompanhado de pão quente, saído do forno do fogão de lenha. Nos intervalos das vendas fiquei a matutar como iria ao encontro de Cidinha, sobraçando a coruja, a linha, a dedeira, os papéis de telegrama, o lápis, a latinha de cera de carnaúba, sem que nenhum irmão o notasse, nem Dona Anginha perguntasse para onde eu ia com tudo aquilo, àquela hora da tarde. Perto do meio dia me veio a luminosa idéia. Cocei, seguidamente, o nariz e logo começou a seção de espirros. De olhos avermelhados e lacrimosos pedi a seu Luiz a dispensa da tarde, que logo me foi dada, e uma caixa vazia - das utilizadas para guardar os fascículos do Atlas Geográfico.
     - Pra que tu queres a caixa, filho?
     Seu Luiz, português de boa cepa, gostava de saber de todos os pormenores sobre o pouco, muito pouco, que saía da banca e não lhe desse lucro:
     - É para comprar flores na feira da Torre, seu Luiz. Vou enrolar num papel de presente e dar para minha mãe!
     - Que santo que tu és, ó Liminha! Se alguma cachopa eu tivesse por filha, pediria a Santo Antônio para seres meu genro! Tome dois mil réis para as flores.E vai com Deus.
     Espirrei agradecido, sorri chorando e corri para a feira, onde escolhi uma dúzia de rosas feitas de massa de pão. Coloquei-as na caixa e fui para casa.
     Logo que entrei, ainda esfregando o nariz e espirrando, fui interpelado por Dona Anginha:
     - O que foi, meu filho? Por que veio tão cedo? O que é que tem nessa caixa?
     Minha santa mãe era assim. Juntava as perguntas numa só, mas fazia questão de ouvir as respostas separadamente:
     - Peguei um resfriado mãe. Seu Luiz me liberou, depois de me fazer tomar uma colher de xarope Brandão e um comprimido de cibalena. E essa caixa, mãe, foi ele também que me deu para guardar a dúzia de rosas que comprei na feira e vou levar, mais tarde, para Nossa Senhora da Conceição, como pagamento da promessa que fiz.
     - Promessa para que?
     - Para tirar dez em matemática, mãe..
     - E já começaram as provas?
     -Não, mãe. Mas eu quero pagar a promessa adiantado.- eu ia falando e ia observando as reações de Dona Anginha. Bastava, para isso, esquadrinhar os seus olhos. Se brilhasse, ela estava sorrindo por dentro. Se ficassem opacos, ela estava pronta para uma reprimenda. Até então, os seus olhos brilhavam. Um brilho suave, celeste, brilho próprio das santas que se fizeram mãe.
     - Deixa-me ver essas flores.... mas, filho, são de massa! O Monsenhor só aceita flores naturais no interior da igreja! Ele não vai permitir que você deposite essas flores de massa aos pés da Virgem! 
     - Mas eu não fiz promessa de flor natural, mãe. Eu prometi uma dúzia de rosas. E não é o que tem aí na caixa, mãe? 
     Salvou-me a interferência de Marcos, católico praticante e entendedor profundo dos dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana:
     - Mamãe, a senhora está confundindo o aprendizado da fé do menino. Deixa-o levar as flores à igreja. Ele é uma criança e lhe cabe bem o chamamento de Jesus; “Deixai vir a mim as criancinhas, pois delas é o reino do céu”.
     Cocei, com força, o nariz, voltei a espirrar forte e aos meus olhos voltaram as lágrimas:
     - Posso levar as flores, mãe? – o brilho em seus olhos era, agora, de sorriso e de pranto.
     - Pode sim, filho meu. Agora descanse um pouco, enquanto eu lhe preparo um caldo quente.
     Fui para o quarto, retirei as flores da caixa, enrolando-as em jornal e colocando o pacote sob o colchão. Abri a mala, onde guardava os meus trecos preferidos, tirei a coruja-campeã e o material que utilizava no empino, colocando tudo dentro da caixa, que enlacei com uma fita de seda amarela, e guardei debaixo da cama – o amor cantando alvíssaras, e o remorso, por minha mãe, machucando o meu peito:

Como podes, diante de uma santa,
conceber palavras mentirosas,
quando a santa nos braços te acalanta,
quando a santa é das santas mais formosas?

Como podes fingir que levas rosas
a outra Virgem de pureza tanta,
se essas flores sequer são perfumosas,
e sem perfume rosa alguma encanta?

Pede perdão à mater dolorosa
por haveres fingido em cada rosa
e a cada rosa reza u’a nova prece

Se a crença for sincera e fervorosa
verás que a rosa, mesmo não vistosa,
de teus sonhos jamais desaparece!

     Após o caldo quente e o chá de limão, servidos na cama, fingi dormitar enquanto deixava os ouvidos despertos às batidas e canto do cuco na parede da sala de jantar. Nas duas horas cantadas eu já estava trajando a camisa de malha, de listas vermelhas e brancas, o bermudão de brim coringa, além do conga zero, presente de Joãozinho em meu aniversário. Sobraçando a caixa, novamente enlaçada com bastante esmero, saí do quarto e, quando me dirigia, pé ante pé, à porta da rua, fui interceptado por Dona Anginha, que se postara à minha frente:
     - Quer que eu vá com você?
     - Não, mãe. A promessa foi somente para mim. – aproveitei a deixa para esfregar o nariz com o braço e dar dois espirros seguidos:
     - Lembre-se que você está resfriado, filho. Não vá rezar demais nem ficar até tarde na igreja. Cuidado para não se cansar. Você ainda deve estar lembrado daquele começo de asma...
     Enquanto ela falava ia arrumando a gola da minha camisa, o cós da bermuda, a meia soquete, olhando os meus ouvidos, o meu nariz vermelho do esfregaço e dos conseqüentes espirros, cheirando o meu pescoço, a minha cabeça...
     - Peraí, que vou passar um pouco de perfume em você.    
     - Nã..., não mãe! A santa detesta essa colônia Coty! Ela chegou a me dar rabiçaca no domingo, depois que a senhora passou essa colônia na minha roupa e eu fui me ajoelhar aos seus pés!
     - Que história mal contada é essa, filho! Nossa Senhora dando rabiçaca?
     - Eu não disse que foi a santa, mãe! Quem deu a rabiçaca foi o Monsenhor. E foi dele que eu ouvi que a santa detestava colônia Coty!
     - Tá bem, meu filho. Você já gosta de escorregar quando está com saúde, doente então...! Vai com Deus que eu fico rezando para que tudo dê certo.
     - Amém, mãe.
     Beijei-lhe a mão estendida – uma vontade imensa de me atirar em seu colo e contar toda a verdade, de acariciar os seus cabelos lisos e embranquecidos pelo sofrimento, de rezar com ela as contas incontáveis de seus rosários:

Perdoa, minha mãe, minhas mentiras!
Tu que és santa no céu, no amor de Deus,
perdoa, mãe querida, os erros meus,
as minhas culpas, que silente ouviras!

São os amores de um poeta as liras
que vibram, nas esperas, versos seus,
que decantam seu pranto no adeus
de adeuses tantos que a chorar me viras.

Perdoa por dizer tanta inverdade
diante de teus olhos de bondade,
perdoa, ó mãe, cada mentira minha.

São mentiras, mas só pela metade,
na metade da minha mocidade.
Perdoa o filho teu, ó Dona Anginha! 

     Ao invés de fazê-lo, toquei para a rua, apressando os passos pelos poucos minutos que restavam para as três horas. Na dobra da esquina diminui as passadas, começando a cadenciar a batida dos passos e a retomar o assovio de Cielito Lindo ao passar em frente à casa de Cidinha. Ninguém à vista. Atravessei a rua, transpus o muro baixo do terreno baldio, abri a caixa e iniciei os aprontos da coruja corcova – agora com novas pinceladas de purpurina e apliques de lentejoulas. Retirei, com cuidado, a gilete da cauda, engatei a linha no cabresto, coloquei-a no alto do muro da casa vizinha, distanciei-me o máximo que pude, e fiquei à espera do vento, que pouco demorou. Uma lufada corre-campo alcançou-a e a alçou acima do teto da casa, enquanto eu cuidava dos manejos da linha, às vezes puxando-a na minha direção ou liberando o carretel para que ganhasse mais altura.
     Foi nesse instante que senti o cheiro de flores de Cidinha e, em seguida, ouvi sua voz:
     - Mas, Liminha, por que você não esperou por mim? Eu queria tanto fazê-la subir!
     - Então venha fazê-lo, Cidinha. Eu apenas a coloquei no braço do vento.
     E me faltou coragem para mais dizer: “Eu estava em meio às visões de meus sonhos, à espera da musa para torná-lo consistente e ser sonho da gente. Eu estava cavalgando um sonho novo, de olhos de mel e boca de maçã”.

Cavalgo de meus sonhos o tropel
em meu corcel alado, cor de prata,
num vôo d’além nuvens e autocrata,
entre balões e pipas de papel.

A quantas tropelias meu corcel
conseguirá transpor na cavalgata,
se os meus sonhos deslocam-se em volata
turbilhonante, como um carrocel?

Tento alcançá-los, entre as nuvens pandas,
mas me fogem dos braços, em bolandas,
e se distam de mim quando os abordo.

E o meu corcel alado, em voltas brandas,
aterrissa meus sonhos nas cirandas
da vida que me espera, enquanto acordo.

     Ela passou fácil por uma das fendas do muro e caminhou em minha direção até encostar o corpo no meu. Passei às suas mão a linha da pipa, enquanto os meus olhos se perdiam na imensidão de seu corpo de menina-moça. O sol brilhava dourado, ressaltando o mel de seus olhos, a maçã vermelha de sua boca e o rosado da pele macia. Estava linda, muito mais linda do que quando a vira da vez primeira! A blusa branca, de mangas cavadas, com decote em “v”, deixava à mostra a concavidade dos seios. A bermuda creme, colada ao corpo, delineava-lhe os quadris, ressaltando-lhe as coxas bem torneadas e as pernas esguias. Os pés estavam resguardados por meias soquetes bordadas com flores da mesma cor do tênis rosa.
     - Olha só como brilha!
     Voltei a olhar para um outro céu, acima da minha cabeça. Cidinha havia manobrado bem a pipa, que alcançara altura suficiente para ser alvo fácil dos raios solares que se refletiam na purpurina e lentejoulas, irisando de cores as mais diversas o espaço em volta. Um espetáculo de céu e terra: as formas e cores de Cidinha em harmonia com as cores e formas do infinito.
     - Posso dar mais linha?
     - Pode. Mas vai perder o reflexo da luz do sol.
     - É melhor que não. E como é que eu faço para ela ficar por cima de mim?
     - Para lhe coroar?
     - Isso mesmo.
     - Deixe-me ajudá-la.
     E ante o aceno permissivo, contornei-a, passei os braços em sua cintura, segurando-lhe as mãos, e começamos, juntos, a velejar a pipa. Meu rosto roçando o seu cangote, o cheiro de cravo e canela, que parecia emanar de seu corpo, tomando conta de meus pensamentos e das minhas ações, o desejo induzindo-me ao abraço, ao beijo, às confissões premidas dentro do peito...
     - Conseguimos! Conseguimos! Olha como ela está! Bem em cima da gente!
     De repente ela se desvencilhou das minhas mãos quase de abraço, devolveu-me o carretel, portou-se à minha frente e sorriu palavras novas:
     - E os telegramas? Como é que a gente manda?
     Expliquei para ela – pausadamente, para que o tempo não se fosse com a mesma pressa com que se dourava o sol – o que para ela já havia detalhado em sonho.
     - E ela acerta mesmo com a resposta?
     - Nunca falha!
     - Passa, então, esse telegrama para mim?
     Ó Deus! ela havia dito essa frase no sonho! Será que eu estava sonhando novamente? Belisquei-me. Doeu. Pedi que ela me coçasse as costas, alegando picada de mosquito. Senti os seus dedos correndo o meu corpo. Não era sonho!
Não podia ser sonho a tirada do papel de dentro do corpete, a entrega, a sensação maravilhosa de sentir o calor de seu peito em minhas mãos trementes de amor! Não podia ser sonho! Não podia ser sonho a repetição da tentativa de arrancar da minha mão o telegrama que eu estava prestes a ler, nem o enrubescimento de seu rosto, nem a frase que se seguiu:
     - Não é para você ler. Quem vai ler é a pipa. Você não pode saber do que se trata!
     Não podia ser sonho, meu Deus, a minha explicação repetida de que eu era o telegrafista, e se não o lesse a pipa não poderia recebê-lo! Nem a sua resposta imediata e decisiva:
     - Eu vou ficar sem jeito. Mas se é assim, pode ler. Eu vou ficar de ouvidos vedados e de olhos presos à pipa.
     Com as mãos trêmulas, li o seu telegrama, alteando a voz como quem fala a uma pipa a uns cem metros de distância:
     - “Eu quero saber se vou casar com Bruno”. – e logo debaixo do nome a marca de batom dos seus lábios. 
     Olhei para ela e vi que ela também me olhava por entre os dedos. Friccionei o nariz no braço e comecei a espirar, tentando fantasiar as lágrimas de desespero e desencanto.
     - Você está resfriado?
     - Não. É rinite alérgica, por causa da poeira.
     - E por que está chorando?
     - Não é choro. É conseqüência dos espirros.
     - E o telegrama? Vai passar?
     Repeti-me no sonho. Furei o papel no meio, fiz um corte lateral até a borda - bem mais largo que o comum para que não suportasse a força do vento e se desprendesse no caminho -, e o inseri na linha. Mas o vento, diverso do sonho, havia amainado. Era apenas um sopro cadenciado, que saiu tocando, tocando, tocando, e tocando o telegrama até que ele se achegasse à pipa, que, igual à do sonho, começou a cabecear, nítida e repetidamente.
     Eu já não mais espirrava. Chorava apenas, olhando para o alto, sem nada ver, ouvindo o batido de palmas e o canto alegre e repetido de Cidinha fazendo rodas à minha volta:
     - Bruno vai casar comigo... Bruno vai casar comigo... Bruno vai casar comigo......
     Dei toda linha à coruja corcova, que agora era um ponto quase indistinto no avermelhado do céu. A força que fiz para partir a linha junto ao carretel e a forma como se rompeu, cortaram meu dedo. Coloquei-o na boca para evitar que os pingos de sangue fossem vistos por Cidinha, e cobri o rosto com o braço para não assistir à minha morte de velejador de pipas e de navegador de sonhos.
     De repente, ela parou a dança e o canto, puxando o braço com que eu cobria o rosto:
     - Você está chorando!
     - Não. Foi um cisco que caiu no olho.
     - Você está chorando, sim! Eu ouvi e estou vendo! Por quê?
     - A minha pipa. A linha se partiu e ela se foi...
     Agora podia chorar à vontade. Ninguém saberia o real motivo. Nem mesmo Cidinha, que se abraçara a mim, num gesto de fraternal conforto, mantendo a reservada distância dos meus sentimentos. Constrangia-me mais ainda aqueles gestos seus, tendentes para a impessoalidade, para o solidarismo imparcial , para uma explícita compaixão ausente de amor.
     - Já está escurecendo. É melhor você voltar para casa.
     - Você está bem?
     - Estou sim. Já suportei perdas maiores. Essa é apenas mais uma. – apanhei os apetrechos que restaram junto à caixa vazia, agora sem mais utilidade, coloquei-os nos bolsos do bermudão, e transpomos, um de cada vez, o que restava do carcomido muro. Acenamo-nos, meio sem jeito, no meio da rua, esperei que ela fechasse o portão, contornei a esquina, e voltei para casa - o soluço calando a batida dos meus passos e os meus passos perdidos nas descompassadas batidas de meu coração.
     Dona Angiinha estava à minha espera, sondando a rua pela bandeira da porta. Ao ver que eu me aproximava foi ao encontro do meu abraço, chorando por me ver chorar, afagando os meus cabelos e apertando o meu corpo contra o seu, como se quisesse me dar mais força e me ceder mais um pouco da sua vida. Levou-me para o quarto, sentou-se em minha cama, acolheu-me no colo, e só depois de me sentir mais calmo foi que perguntou:
     - O que houve, filho meu?
     - O padre não me deixou colocar as flores aos pés da santa, mãe!
     Voltei a chorar novamente. Não um pranto convulso, de desespero, aflitivo. Mas um pranto um tanto de mágoa, de decepção, de descrença, um choro quase calado e de poucas lágrimas, como o choro dos desiludidos.
     - Mas, meu menino, eu lhe avisei que o Monsenhor é exigente nessas coisas! Eu disse a você que não ia dar certo! O culpado foi Marcos, que insistiu comigo para você levar essas flores. E o que é que você fez com elas, meu santo?
     - Deixei na porta da igreja mãe. Dentro da caixa, com laço de fita e tudo. A santa vai saber que elas estão lá, que eu não pude depositá-las em seus pés, mas que depositei na porta de sua igreja.
     - E por que demorou tanto para voltar, filho?
     -Fiquei tomando conta da caixa, mãe. Para que ninguém a levasse. Deixei passar umas três horas para considerar a promessa cumprida.
     - Claro que você cumpriu a promessa, meu amor! Agora vá tomar um banho e trocar essa roupa. Que Deus te abençoe.
    - Antes, mãe, vou tirar os sapatos, para não sujar a casa. Depois vou rezar por Frederico Primeiro, no quintal. Sonhei com ele hoje, depois do almoço. 
     - Vai, meu santo. Da mesma forma que eu te entendo, Deus te entende e entende as tuas rezas.
     Entrei no quarto, tirei os sapatos, apanhei as flores que deixara sob o colchão, e me apressei na ida ao quintal, antes que o pessoal chegasse para a janta. Não queria testemunhas. Tirei da bermuda os apetrechos de empinar pipa, cavei um buraco junto ao túmulo de Frederico Primeiro, o meu sapo rei, falecido há dias, e nele os enterrei juntamente com as flores - representando o fim do namoro com Cidinha e a morte dos aprestos das pipas que coloriram, por um tempo que jamais há de ser esquecido, os meus sonhos de criança.

Ah! esse sonho meu, rondando brisas
pelas sendas da noite em que sozinho
procuro achar em mim novo caminho
do teatro da vida dentre as frisas.

Sonho dos sonhos meus, formas precisas
sangrando as dores em que me definho,
que se esconde de mim e o adivinho
dos sonhos natimortos nas divisas.

Fluida forma, intermitente e fútil,
concebê-la veraz parece inútil,
quando surge e se esconde de repente.

Ah, esse sonho meu, que a noite solta
e, sobranceiramente, ei-lo de volta
de forma fluida, fútil e intermitente!

Odir, de passagem