A aranha de Alice Mirat

Numa tarde ensolarada em que pássaros cantavam no céu azul de São Paulo e carros cuspiam sua fumaça cinza nas ruas movimentadas da zona sul, Alice Mirat fazia as unhas em sua manicure de confiança e, absorta, observava uma aranha que, calmamente tecia sua teia.

Isso fez Alice divagar em seus pensamentos mais filosofais e estranhos. Pensava na sua vida, na existência da aranha e até mesmo no fim trágico do inseto que ela comeria.

Alice é uma garota de 29 anos. Sim, garota. Não a chamo de mulher por conhecê-la muito bem. Alice se recusa a crescer. Alice quer sempre ser jovem. Tem medo de envelhecer. Tem mais medo de ficar velha do que de morrer. Muitas vezes deseja até morrer cedo só para não ter de ficar velha e ver seus cabelos ruivos sem cor, sua pele alva sem sabor, sua voz sem tom e suas pernas fracas. Tem pavor.

E olhando a teia tecida por ser tão venenoso, pensou em sua vida, nos desejos que tem e nos objetivos que quer alcançar antes de envelhecer. Se é que vai envelhecer…

Alice quer escrever um livro. Quer rever amigos. Ler livros de seus amigos. Visitar cidades interioranas. Se dedicar a si mesma e às pessoas que ama.

Ora, mas que descaso, passa em sua mente um pequeno empecilho: O tempo.

O tempo é o devorador de Alice Mirat. O tempo que lhe escorre das mãos e a faz se sentir sem controle da vida e do mundo. Alice detesta não sentir o controle das rédeas. É um desejo sobrenatural intrínseco em sua personalidade que ninguém, nem ela própria, poderão mudar.

Mas no seu íntimo ela gosta de ser assim, melancólica, absorta, amiga, dedicada, sorridente e chorona ao mesmo tempo. Sente o coração endurecido, mas também o sente frágil como uma borboleta que livre voa pelos campos e tem vida curta, embora bela. Endurece sem perder a ternura.

Lá fora Alice vê pessoas passando como nuvens bacantes sem rumo e sem sentindo, apenas sendo. E é disso que ela gosta. De extremos. Alice é feita de extremos.

Enquanto observava o ser aracnídeo tecer sua rede alimentícia e reprodutora, Alice viajava em pensamentos. Chegou a sentir que estava em outro lugar e começou a dialogar com a aranha e esta contava para que cada fio tecido servia e como este era fabricado. Falava também das sensações que sentia e da fome que a atormentava.

Algumas pessoas nomeiam Alice como louca, mas para mim ela é um ser sensível que mergulha na essência das coisas com um olhar lúcido, mas com a mente cheia de ações psicodélicas que só seu coração e mente podem conceber.

Alice é incompreendida por muitos, mas amada por muitos também. Talvez eles vejam nela a ausência da máscara que não conseguem remover.

"Detesto o natal" – ela diz – "Essa hipocrisia que Nietzsche tanto menciona em seus livros".

Alice é muito sensível e triste porque não consegue moldar a sua própria realidade. Não consegue se fazer entender. Cansou. Mas não se cansa de sonhar e desejar. Precisa disso, é seu combustível, seu ar.

No natal Alice prefere ficar sozinha e não sair muito de casa. Ela diz que acha que as pessoas deveriam se amar e se presentear o ano todo e não somente numa data específica. E também dizer que se odeiam se for o caso. Alice não suporta hipocrisia. Penso eu que por isso vive cercada dela.

Aquilo que mais odiamos pode ser nosso maior defeito ou o que devemos aprender a respeitar ou suportar.

Eu posso falar de Alice, pois a conheço demasiadamente bem.

E continuo a observá-la a falar em pensamentos com a tal aranha.

Que será que ela diz? Será que se diverte com trabalho tão artesanal ou já está pensando na vítima que será pega por esta teia? Não sei. Alice é imprevisível que às vezes me dá medo. Ouço seus pensamentos, outras vezes seu silêncio. Penso que ela seja uma bruxa.

Depois de alguns minutos terminou de fazer as unhas e agora cuidará do cabelo. Aparar as pontas. Mas não deixa de olhar a aranha. Vai pintar os cabelos de ruivo, como sempre. Se existe algo com que Alice não é contente em seu corpo é com seus cabelos. Todo o resto ela suporta, mas os cabelos… Vive dizendo que nasceu com tudo que queria, mas com as cores de cabelo erradas. Vai entender… Cada um tem um pouco de paranóia, não é mesmo? Até eu tenho as minhas. Por exemplo, certo dia ia caminhando pelas estradas de… Bom deixa para lá, voltemos a Alice.

Ela é admirável. Não tem estas belezas impostas pela sociedade consumista não. Não senhor! Sua beleza está no olhar. No modo de mexer os lábios, em seus pensamentos e na sua sensibilidade. Sua inteligência, sua empatia.

Certa vez ela me disse que está sempre rodeada de espíritos que a obrigam escrever a todo tempo.

Fico a imaginar que neste momento em que olha a aranha tecer sua teia, Alice precisaria de uma caneta e papel em suas mãos para não perder esse sublime momento. A sorte é que eu estava lá. Mas em sua mente, só ela sabe o que estava acontecendo realmente. Eu pude ouvir algo e sou apenas uma observadora de almas observadoras. Realizo nela aquilo que não posso ser. Alice tem a coragem que às vezes me falta. Ela não usa máscaras como eu. Fala o que pensa e se fala e magoa, pensa logo em corrigir o que faz, mas não volta atrás no que disse. Ela é dinâmica. Ninguém consegue ter raiva dela.

Eu a admiro. Queria ser como ela. Sempre quis.

Alice não emite nenhum som nestes momentos. Sua conversa com a aranha é telepática.

Eu dei a esta aranha o nome de Tempo. Que tece aos poucos e com destreza e beleza sua teia forte e nociva. Este tempo conversa com Alice de como, aos poucos, tece sua teia ao seu redor e será criado, convertido em idades, quer queira quer não.

Ele diz também que não há o que se faça a não ser bailar a vida ao sabor do vento, comemorar a existência em nome de si mesmo e do Grande Arquiteto do Universo: O Amor.

Alice termina e sai do salão. Já começa a olhar os transeuntes de sua rua e se admira com um gato. Começa a conversar com ele telepaticamente. Alice não pára. Sua mente não pára. Nem o tempo…

Emilia Ract
Enviado por Emilia Ract em 05/08/2008
Reeditado em 08/09/2008
Código do texto: T1114574
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