REENCARNAÇÕES

Noite fria de junho.

A chuva lá fora gotejava no chão enlameado da rua.

Os retardatários seguiam evitando as poças d’água procurando locais mais fáceis de andar na vã ilusão de sujar menos os pés, já a essa altura completamente molhados.

Apaguei as luzes para melhor desfrutar do clarão dos raios que vez por outra iluminavam as nuvens negras que toldavam completamente as estrelas e o quarto minguante que flutuava muito acima da chuva.

O coro dos sapos fazia a mente voltar muitos anos atrás.

Ambientes já vistos, acontecimentos já vividos na infância tão distante. À noite, durante as missões, a procissão saía de uma casa para outra. Rostos familiares, conhecidos que a morte havia levado para sempre. Batem à porta.

Batem insistentemente.

Enrolando o lençol na cintura, abri a porta.

Um homem de meia idade estava parado, com guarda chuva gotejante na mão e um sorriso amigável. Pedi que entrasse e indiquei a poltrona, pedindo que sentasse.

- Desculpe pelo roupão improvisado. Não sei dormir vestido.

- Não se preocupe. De onde venho, lençol é privilégio.

- Chá ou alguma bebida?

- Os dois. Primeiro o aperitivo. Está frio. Chá leva tempo para aprontar.

- Vamos para a cozinha.

Coloquei água na chaleira e acendi o fogo.

A chama azul crepitou sob o alumínio, servi dois cálices de licor de jenipapo e entregando um ao visitante, perguntei.

- A que devo esta visita numa noite tão fria? Qual seu nome? O que deseja de mim?

Rindo o estranho respondeu.

- Vamos a uma pergunta de cada vez.

Desejo revelar fatos sobre a vida humana que você se recusa a aceitar. Está chegando o momento de você agir e essa aceitação é fundamental.

Esse fogo não lhe lembra nada?

- Não. Respondi prontamente para saber o fim dessa história, pois já estava pensando que o homem era um assaltante que eu ingenuamente deixara entrar em casa.

- Faça um pequeno esforço, procure lembrar olhando a chama.

- Ora, todo fogo é igual. A diferença é a proporção.

- Não lembra a pira que acendemos no acampamento para indicar nossa posição, numa noite chuvosa como esta muitos anos atrás?

- Como assim se eu nunca o vi antes.

- Talvez se você observar minha roupa...

Só então lembrei que o visitante ainda estava vestido com a capa completamente molhada que gotejava no chão.

- Veja só que distração, desculpe, dê-me sua capa.

Era uma capa cinza feita de tecido grosso misto de algodão com lã, forrada com couro macio para evitar que a água entrasse em contato com o corpo de quem estivesse vestido.

A roupa era uma camisola, pouco acima do joelho, bordada de dourado, corte quadrado no peito, mangas curtas, cinto largo de couro na cor natural.

Nos pés sandálias também de couro com tiras finas, trançadas nas pernas até os joelhos.

No punho direito, pulseira de metal brilhante com inscrição grega – ALEFUS – senti alegria enorme em rever aquela roupa, mas a fisionomia do visitante ainda era estranha.

Coloquei a água fervente no bule e disse que deveríamos esperar para o chá tomar cor.

- Não é a primeira vez que você me diz isso. Já ouvi tantas vezes que já sei de cor.

- Alefus, é assim que se diz seu nome?

- Claro. Ou você já esqueceu o grego?

- Mas eu nunca soube grego. O que sei são apenas alguns prefixos e sufixos que o português herdou.

- Não posso entender como o ser humano, capaz de tantas coisas, tem a memória tão fraca principalmente para coisas ocorridas recentemente.

- Ora Alefus, eu nunca o vi antes. Não sei quem é você e ainda fica com essa brincadeira de gato e rato.

- Era exatamente essa a expressão que você usava para descrever as batalhas quando atraia o inimigo para as armadilhas. Está lembrando afinal.

Ao dizer isso Alefus colocou a toalha da mesa no chão, um banco de cada lado e mandou que sentado, observasse com atenção.

A toalha havia se transformado num imenso mapa com campo de batalha, tendas de campanha onde eu estava cuidando de homens com elmos amassados, membros quebrados, fraturas expostas... um caos.

- Sim Alefus, agora eu lembro. MS como se explica? Eu era general médico de campanha do exército grego e você o médico assistente, quando um romano louco de fúria invadiu o hospital e transpassou meu fígado com o gládio enferrujado.

- E agora...

- Agora sou funcionário burocrata...

- Porque nasceu outra vez...

- Mas ninguém nasce outra vez. Nós só temos uma vida.

- Você continua o mesmo descrente. Então como me explicar aqui.

- Não sei explicar. Nem tudo tem explicação.

- Explica-se sim. Tudo tem uma razão de ser e o conhecimento dessa razão só depende do esforço de cada um para atingir.

Observe os detalhes. Tudo é cíclico no universo. Você, eu, todos nós repetiremos as coisas que fizemos erradas para poder consertar.

- Não aceito essa justificativa. Isso não passa de alucinação. É manifestação onírica.

- Muito bem. Levante-se e ande. Vê? Você ainda é coxo.

- Mas isso é conseqüência de uma injeção mal dada.

- Se não fosse a injeção, seria qualquer outra coisa. Você determinou seu padrão como coxo e assim será até que você mesmo decida em contrário.

- Mas antes eu não era.

- Não? Observe melhor a toalha.

Vi um homem gordo, careca, coxeando por uma calçada da Avenida Champs Elisée. Ao me fitar, vi que era eu. Trazia uns jornais amarrados. Perguntei-lhe...

- Qui êtes-vous?

- Je suis Joaquim. Je travaille dans une imprimerie. Ce journal, c'est d'aujourd'hui.

- On'est quelle jour?

- Douze d'août de mil sept cents et trente neuf.

- On'est où? Dans quelle ville?

- On'est à Paris. Vous ne connaissez pas la ville lumière?

Minha atenção foi desviada para a porta de um bar e perguntei a Alefus.

- Quem é esse policial que me olha tanto?

- Sou eu. Estou por perto para tentar evitar o que você vai ver agora.

Enquanto Alefus falava, vi um homem corpulento sair da taverna e sem qualquer motivo aparente atirar em mim, com pistola de cano longo.

Vi-me morrer, mas só o corpo ficou parado eu espírito continuei andando.

Outro tiro matou Alefus... Tentei ajudar...

Num repente lembrei todos os recursos médicos usados nos campos gregos.

Não adiantou. O espírito de Alefus segurou meu braço e disse.

- Venha nada mais pode ser feito.

- Espere eu quero ver o que vai acontecer.

Algum tempo depois surgiu uma carruagem que mutilou os corpos ao passar por cima.

Um carvoeiro recolheu os pedaços e jogou no Rio Sena.

- Tu sabes quem era o homem que atirou em nós?

- Sim era o romano do gládio.

Dito isso Alefus levantou do banco e perguntou se o chá estava pronto. Coloquei o chá em duas xícaras e perguntei se ele queria açúcar, pois sabia que ele só adoçava qualquer coisa com mel.

Falamos de muitas coisas vividas até que Alefus perguntou.

- Você lembra o princípio?

- Sim, fomos todos criados numa única massa, um aglomerado consciente onde cada partícula tem vontade própria.

Lembro também da proposta do criador, uma onda forte, inteligente, impalpável, pela qual deveríamos adquirir formas distintas, utilizando matéria tangível, sem interferências castigos ou prêmios para os atos que praticássemos.

Deveríamos tentar atingir a perfeição, buscando no auxílio mútuo, a compreensão do que venha ser vida.

Temos o direito de alterar nossa forma, poderemos ser o que quisermos e se não houver o modelo a ser copiado, deveremos partir da forma mais aproximada e ir tentando até conseguirmos.

Hoje a ciência classifica em minerais, plantas, animais, fungos, bactérias e os seres intermediários para os quais o homem ainda não conseguiu chegar a um consenso e que nós sabemos ser apenas matéria consciente.

Voltaremos sempre ao princípio e seremos sempre matéria.

- Em sua opinião, qual seria o objetivo final de nossa existência?

Havia uma luminosidade indefinida na sala em que estávamos.

- Não temos ainda uma definição. Por enquanto somos pequenos deuses, complementando e muitas vezes prejudicando o desenvolvimento do outro, como baratas tontas em busca de um norte.

Quando os átomos se agruparam formando a massa inicial, complexa, pensante não havia sido determinado objetivo algum. Tudo era o início da experiência e parece que ainda nem saímos da largada...

- Você concorda com a afirmação bíblica de que és pó e ao pó retornarás?

- Se você quiser definir pó como átomos, sim. A ciclagem da matéria é indispensável.

A morte do organismo é um dos estágios da transformação, nada mais que isso.

Entretanto, como base de religião, acho duvidoso mesmo porque o criador nunca disse isso.

Se não, onde estaria o livre arbítrio?

O criador é bem mais sério do que toda essa parafernália que lhe é atribuída.

- O que é energia?

- Grosseiramente é a matéria em movimento na tendência ao equilíbrio das correntes energéticas.

- Você está definindo energia com a palavra energia.

- Como você definiria sentimento?

- Eles não se definem. Simplesmente sentimos.

- É como a energia. Definir-la seria definir a si próprio. Tente. Preciso ir.

Começavam a surgir os primeiros raios do sol. A chuva havia parado. Peguei a capa de Alefus e ajudei-o a vestir-se.

- Foi bom rever você. Quando voltará?

- Quando quiser me ver, basta pensar em mim. Atenderei seu chamado.

- Mas será que lembrarei quando o dia estiver alto?

- Claro que sim. Lembre-se, temos o poder de controlar nossas vidas e nada está previamente determinado.

Alefus saiu. Não pisava, flutuava acima do chão e desapareceu entre as árvores da rua. Fechei cuidadosamente a porta e... o relógio despertou.

Eram cinco e meia da manhã. Tudo estava tal como na noite anterior. Teria sido sonho?

Depois da barba fui para a cozinha.

Havia uma atmosfera diferente, xícaras sobre a mesa, chá ainda morno, água no chão como que escorrida de algo muito molhado.

Não, era ilusão minha, sonambulismo, nada mais que isso.

Fui trabalhar, mas, a lembrança de Alefus me acompanhou durante todo dia.

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Dias depois, na volta para casa, fui abordado por uma senhora que andava em direção contrária a minha, roupas estranhas, passos largos. Com a fisionomia carregada ela disse.

- Os invasores incendiaram o canavial do senhor João Fernandes e estão à vossa procura.

- Mas que invasores?

- Ora senhor Joaquim de Miranda, não me venhas com brincadeiras em horas tão amargas.

- Desculpe-me senhora é que nesses dias estou com a cabeça fora de mim.

A mulher afastou-se e ficando novamente só, pude observar que a rua não passava de uma vereda lamacenta, todas as casas haviam desaparecido, a minha volta canavial alto e pendoado deixava entrever a torre da igreja da Várzea.

Eu estava de fato no caminho de casa.

Mas por que eu estava vestido com roupas diferentes, cinto largo com espada, botas de cano alto?

Continuei andando em direção à igreja. Ouvi vozes. Não entendia o que falavam, era uma língua estranha, lembrava alemão.

Uma mão forte me arrastou para dentro do canavial.

Era Alefus. Negro, vestido com calça de estopa. Era escravo. Meu escravo.

- O que significa isso, Alefus? Nova encarnação.

- Exatamente. Estamos em 1648. Você é português e eu seu escravo. Fui trazido da África para podermos ficar juntos. Você me comprou do todo poderoso João Fernandes, antes que ele me matasse de pancada por fugir para o seu engenho. Aquela senhora era dona Mercedes sua esposa.

- Então não foi sonho nosso encontro noutro dia?

- Não. Foi uma re-memorização do passado.

- Essa é muito boa...

Através de auto-hipnose qualquer um pode fazer retro-projeção, baseado numa história já vivida por alguém ou na leitura do genoma herdado dos nossos ancestrais, onde tudo ficou registrado.

- Como não prova? Vou lhe mostrar com detalhes tudo o que está acontecendo.

- Não perca seu tempo. São fatos passados, já vividos por alguém.

Você mesmo não existe agora. Isso que estamos vendo é pura ilusão. É como se fosse um rádio que estivesse captando as ondas de um programa emitidas há muito tempo atrás. Como a luz de estrelas que atravessam o infinito durante séculos, nós vemos e ela continua, pois não se acabam.

- Pois muito bem, vez que você é incrédulo irredutível, vamos avançar no tempo e vermos nossas vidas daqui a catorze séculos.

- Com isso você quer dizer que existe destino?

- Não. Não foi isso que eu disse.

- Como não. Se vamos ver o que vai acontecer, significa que já está tudo traçado, previamente estabelecido.

- Você não entendeu. Se vamos nos adiantar no tempo, o que hoje para nós é futuro será passado porque já foi vivido.

Entretanto como nós temos o livre arbítrio e podemos alterar nossa vida a qualquer momento, depois de saber o que vai acontecer você poderá alterar o curso dos acontecimentos quando estiver vivendo-os para não chegarem onde não deseja.

Dito isto fomos andando em direção ao norte e para cima...

Os acontecimentos foram sucedendo de forma vertiginosa. Cada vez mais rápido...

Eu via nascimentos, vida e morte de várias pessoas que, na verdade, era eu mesmo.

O cenário também mudava na mesma velocidade até parar numa fazenda marítima. Alefus disse:

- Pronto, estamos no ano de 3048, exatamente catorze séculos depois daquele entardecer quando você estava voltando para casa e encontrou a senhora Mercedes que hoje se chama Cândida.

O local é o mesmo. Entende agora o que é energia e o que eu quis dizer sobre o movimento da matéria?

Observei o entorno. Tudo era água. Límpida, azul, salgada, morna. Água. Muita água.

- Não entendo Alefus, como é que estamos na Várzea e estamos dentro d’água, respirando e falando sem ajuda de aparelhos?

- Mil e quatrocentos anos foi tempo suficiente para derretimento das calotas polares e de rebaixamento das placas tectônicas.

As áreas secas da terra hoje não representam nem metade do que era antes.

- Então cidades como Rio de Janeiro, Recife, Lisboa...

- Desapareceram para sempre, assim como desapareceram as intrigas e desavenças internacionais. Nos turbulentos períodos até o ano 2500, as quase mil nações viviam se digladiando querendo a todo custo dominar os meios de produção. Mas ninguém teve a coragem para detonar o arsenal atômico, pois sabiam que seria a guerra sem vencedores.

Um grande estadista propôs numa reunião a saída mais simples até então inimaginada.

Todas as pessoas se comprometeriam a:

1, usar a telepatia para comunicação, pois não importa a língua falada. As idéias são sempre as mesmas;

2, eliminar as fronteiras. Realizar o sonho de todos de poder ir e vir. Os objetivos dos viajantes e as causas das viagens seriam conhecidos por todos graças à telepatia;

3 treinar a parte desconhecida do cérebro humano.

Por serem proposições simples, todos aceitaram e menos de cinqüenta anos depois, toda aquela estrutura arcaica havia sido substituída por uma nova ordem.

O treino do cérebro fez com que o ser humano fosse capaz de fotossintetizar a glicose.

Com isso os vegetais foram poupados.

A proteína animal foi conseguida através do cultivo do camarão, que hoje é nosso trabalho.

A escrita passou a ser ideográfica. Levitar, transubstanciar e tele-transportar foram aprendidos rapidamente.

Aprendemos a reativação do códon gênico responsável pelo desenvolvimento da respiração branquial em contra corrente.

A auto-suficiência acabou com a dependência e as pessoas deixaram de ser opressores e oprimidos.

O trabalho dos robôs otimizou a produção e Marte é um posto avançado das viagens interplanetárias.

A população humana decresceu vertiginosamente e as bactérias que se alimentam de poluentes limparam a terra, o ar e a água.

As usinas geradoras de energia ficaram obsoletas porque o homem desenvolveu a faculdade de emitir a luz que precisa para ver.

- Como os morcegos com o som?

- Exatamente.

- Então voltamos ao Édem?

- Se você quiser chamar assim...

- Se já não há mais disputas, se não dependemos mais dos outros, se somos auto-suficientes em tudo, se finalmente chegamos a um denominador comum, conseguimos terminar a ideia do criador. Isso é o Édem, conforme Moisés.

- Moisés foi um legislador de um povo sem rumo que sofreu o barbarismo das invasões, destruição, escravidão, fome e desespero. Foi necessário no seu tempo, hoje não é mais.

- Acho que devo voltar para casa agora. De nada vai adiantar eu ficar aqui e ser considerado desaparecido.

- De onde você tirou essa ideia?

- Mas eu não estou aqui?

- Sim e não. Sim porque é você mesmo e não porque seu corpo material continuou fazendo tudo o que normalmente você faz. Portanto para os demais que não estão participando desse encontro, nada se alterou.

- Então eu quero ver minha vida agora.

Saímos nadando até a praia.

Não que houvesse necessidade disso, pois bastaria desejarmos para ser transportado pela telecinese.

Nadamos até um molhe onde vários barcos estavam atracados.

Subimos a escada de alumínio.

O piso era revestido por plástico escuro, antiderrapante e frio apesar do sol forte.

Alefus explicou que as bombas solares levavam água do mar para a estrutura para manter a temperatura.

Quando noite ou dia sem sol, as bombas não funcionavam.

Chegamos ao armazém onde tiramos as roupas de borracha e penduramos as nadadeiras.

Depois do banho doce vestimos a roupa simples feita com algodão, calça de elástico na cintura, blusa de corte quadrado com nome e número bordados no peito.

As sandálias e o chapéu eram de palhinha. Ante minha admiração, Alefus esclareceu que o nome era para que todos soubessem com quem estavam falando. O número, composto de nove dígitos era o controle geral. Eu era 572313021, isto é, filho do casal 57, macho, 31ª tribo, nascido em 3021.

- Voltamos então ao regime tribal?

- Você conhece forma mais simples e melhor para se organizar uma sociedade?

Não tive argumentos. Alefus continuou explicando que quando nasce uma criança o número dela é fornecido na maternidade e esse número serve para alimentar o banco de dados sobre as pessoas.

Curso preparatório, formação, casamento, numero de filhos, trabalho e morte.

- O que é o curso preparatório?

- Quando a criança completa dois anos, é matriculada para aprender com pessoas especializadas, como sintetizar alimento, transubstanciar, tele-transportar, desenvolver a telepatia aprendida com os pais.

Esse curso dura quatro anos em regime integral.

A criança só volta para casa uma vez por semana, durante o dia.

À noite volta para a escola.

Não pense que é cansativo. É brincando que se aprende e fica apta para a segunda fase onde aprenderá as matérias para viver em sociedade como zootecnia, agricultura, artes plásticas, música, dança, mecânica, construção civil etc. somente aos vinte anos é que estará apta a assumir seu lugar na sociedade.

Existem cursos de especialização para tornarem-se professores.

- Por que aprender agricultura, se fazemos fotossíntese?

- Só os que entendem a natureza são capazes de respeitar-la.

Nós conseguimos ser auto-suficientes mas não perdemos o bom gosto. Sinta esse algodão que estamos vestindo...

Observe as flores dessa rua, o piso da calçada...

Como poderemos cuidar do algodão e da seda se não soubermos agricultura?

Como poderemos continuar as pesquisas sobre o camarão se não soubermos zoologia?

Como poderemos continuar otimizando as fazendas se não soubermos zootecnia?

Chegamos à outra rua ajardinada com casas espaçosas, terraços largos mostrando o perfeito entrosamento homem natureza.

Grandes jardins, com fontes d’água corrente e arvores frondosas que coavam a luz do sol, já no ocaso.

Um cão enorme levantou-se abanando a cauda e veio ao meu encontro.

Herói, meu cão dinamarquês, branco com manchas pretas, olhos brilhantes, coleira de couro com rádio transmissor que o chamava quando queríamos sua presença.

Abrimos o portão da cerca e entramos.

Duas crianças louras brincavam junto a um tanque com peixinhos dourados.

Antonio e Áurea, meus filhos, sete e cinco anos correram para mim, cobrindo-me de beijos.

Na varanda a mulher linda de cabelos acobreados, pouco acima do ombro esperava-nos com sorriso nos lábios...

Era Cândida, minha esposa.

- Por que voltaram tão cedo? Laura ainda não chegou.

Explicou a Alefus o atraso da esposa dele.

Nem comecei a preparar o jantar. Justificou-se.

- Não tem importância, estamos em fome. Comemos camarões desgarrados durante o trabalho...

- Esse emprego de vocês é uma grande farra...

Entramos. Nossas roupas eram todas iguais. Tudo era muito simples naquela casa confortável.

Cadeiras grandes, sofás, redes, televisor na sala...

Nos quartos apenas as camas com gavetões na parte de baixo.

Fomos para o terraço e deitamos em redes confortáveis feita de tucum e conversamos até que Laura chegou.

O jantar foi simples como tudo naquela casa. Numa bandeja grande ornada com vegetais, estavam camarões e lagosta crus, algas, pepinos do mar, polvo aferventado cortado em tirinhas, milho verde e feijão.

Vários molhos coloridos. Nenhuma bebida alcoólica ou muito quente.

No fim Laura serviu um caldo de legumes que havia trazido.

Depois do jantar assistimos a um programa na TV.

Tudo funcionava telepaticamente e o televisor usava bateria de energia solar.

Alefus e Laura saíram para a varanda onde a luz do quarto crescente ressaltava a beleza das samambaias que quase toavam o chão, embaladas pela brisa morna...

Tele-transportaram-se para a casa deles.

Entramos...

Fechei as portas...

Prendi Herói no canil para que ele não fosse dormir na cama de Áurea. As crianças dormiam tranquilas, beijei Cândida, tirei a roupa e adormeci...

Um enorme alvoroço me despertou...

Um gato passava no muro e as cadelinhas ladravam desesperadamente.

Já era dia alto. O calendário marcava 11 de setembro de 1986...

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Esta historinha é dedicada a todos aqueles que acreditam que o homem é capaz de qualquer coisa, sem precisar dizer que recebe influências do sobrenatural ou ajuda de deuses para suas ações.

Somos matéria que pensa...

Nossa imortalidade consiste na transformação da matéria em outra matéria... Nada mais.

Dedico principalmente ao amigo Alfredo José Soares Borba que, por sua teimosia, me obrigou a escrever as minhas encarnações e reencarnações.