SÓ COMER E DORMIR

Tem coisas de criança que a gente precisa levar mais a sério, por exemplo, quando o Tércio tinha cinco anos perguntaram-lhe o que queria ser quando crescer, ao que respondeu sem vacilar: ”Aposentado”.

“Mas como ‘aposentado’, Tercinho, isso lá é profissão?” Retrucou-lhe a mãe. O esperto pirralho explicou: “Ora! Não é a profissão do vovô? Ele vive só para comer e dormir e ainda recebe um monte de dinheiro todo mês (pueris ilusões). Eu não quero ser como o meu pai que trabalha pra burro e está sempre ocupado ou cansado. Além do mais, papai nunca tem dinheiro para nada e o vovô sempre tem um dinheiro para comprar chocolate, para me levar pro circo e comprar presente”.

Foi difícil convencer o pequeno Tércio que ele teria que ser um médico, ou um advogado, ou um engenheiro – só lhe davam essas três opções – para depois de muitos anos, quando ficasse velhinho que nem o vovô, é que poderia ser um aposentado.

Tércio cresceu, estudou, mas nunca desistiu do sonho de moleque. Todos os dias ele pensava em aposentadoria. Contava os anos, meses e dias que antecediam o grande dia do ultimo expediente. Não pensem que ele era um mau profissional, longe dele aparentar ser o tipo preguiçoso que não queria saber de trabalho. Não, pelo contrário, era caprichoso em tudo que fazia. Óbvio, tinha a firme convicção de que não poderia ficar desempregado, pois isso significava menos contribuição para o INSS e, conseqüentemente, retardaria a sua tão desejada aposentadoria. Sempre se destacava em todas as empresas que trabalhava, mas essa era a motivação do seu excelente desempenho profissional.

Teve várias profissões, ou melhor, ocupações. Preferencialmente procurava alguma atividade que envolvesse periculosidade, salubridade, alguma espécie de risco. Ocorre-lhe que essa opção traduzia um desejo de viver perigosamente? Ledo engano. Na verdade essas atividades de risco o encaixavam em possibilidades legais que poderiam proporcionar uma brevidade no seu tempo de contribuição e assim encerrar a carreira mais cedo.

Ele era tão obcecado nessa questão que não atrasava um dia sequer a prestação de seu plano de previdência privada. Era gostoso de ver a cara de satisfação do Tércio ao quitar cada parcela daquele plano, havia sempre um sorriso otimista e um olhar esperançoso. Ele sabia que só com o que o INSS lhe pagaria não daria para manter o mesmo padrão de vida e (um cara vocacionado para ser aposentado que nem ele) não pretendia ser um aposentado duro.

Certo dia, quando faltavam dois meses para o melhor dia da sua vida, assim ele declarava, organizou uma festinha entre amigos com o tema “chá de júbilo”, Júbilo nos dois sentidos, tanto no de contentamento (o dele, é claro), como no sentido de aposentar-se mesmo. Distribuiu uma lista de presentes entre os convidados, indicando as lojas onde deveriam ser comprados. Era o que ele chamava de “kit aposentadoria”. Na lista continha, entre outras coisas: uma rede, três pijamas, um boné de velho, um jogo de dama, uma dentadura, um radinho de pilha, uma cadeira preguiçosa e uma bandeira do Ferroviário Atlético Clube.

Até que enfim o grande momento chegou, seu último dia de trabalho. Dali para frente era “Só comer e dormir”, frase que repetia como slogan do seu almejado ideal de vida. Acordou cedinho, tomou um café escoteiro e foi trabalhar com um sorriso que não lhe cabia no rosto. Cumpriu sua rotina normalmente, depois arrumou seu birô, encaixotou seus objetos pessoais: porta-retratos, almofada de fuxico, garrafa térmica, porta-lápis e outras bugigangas que guardava não sei para quê. Seus colegas lhe prepararam uma singela homenagem. Havia bolo, refrigerantes, salgadinhos e muita alegria. Seu Tércio estava emocionado. A cada discurso dos seus colegas seu coração batia mais apressadamente, a cada palavra de gratidão seu coração batia mais rapidamente, a cada elogio seu coração batia mais afobadamente, a cada presente seu coração batia mais desesperadamente, a cada ... e espantosamente seu coração parou. Não resistiu a tanta emoção. Seu Tércio morreu ali, na sala onde trabalhou boa parte da sua vida. Bateu as botas antes de bater o ponto pela ultima vez.

Triste essa história, não é? Imaginar um sujeito que vive a vida toda pensando em se aposentar, em “só comer e dormir” e no momento exato de subir no podium das suas conquistas, tem um piripaco e morre. Trágico! Qualquer um ficaria chateado, desamparado, desmotivado, mas esse é Joseph Climber, digo, Tércio Miranda, um exemplo de perseverança, sua história não termina aqui, não abandonaria jamais o seu sonho de infância que lutou por toda vida.

Foi saindo do seu corpo suavemente. Demorou alguns minutos para perceber que havia morrido. Enquanto sua alma subia para a eternidade falava para si mesmo. “Puxa vida! Tanta luta na busca de uma conquista e vou morrer logo agora. Nadei, nadei e morri na praia. Mas, pêra ai... acho que nem tudo está perdido não, vou para a eternidade e lá deve ser assim... só comer e dormir, como sempre quis viver”.

Um porteiro velhinho veio ao seu encontro. Aspecto sisudo, de poucas palavras, aquele espírito, anjo, entidade, sei lá o quê, executava os procedimentos de praxe: examinou seu nome na lista, conferiu os dados, preencheu os formulários e lhe entregou uma rede dizendo: “Agora o senhor vai ali, amarre essa rede na sombra entre duas árvores e durma. Quando você sentir fome, automaticamente aparecerá ao seu lado uma mesa com a comida que você desejar, seja no café, no almoço ou no jantar. Após você se servir, tudo desaparecerá também de forma automática. Então se deite e durma novamente. Todos os seus dias daqui para frente serão assim”, concluiu. “Então quer dizer que minha vida será só comer e dormir, é isso?”, “Exatamente”, respondeu o circunspecto recepcionista.

“Consegui, consegui”, gritava enquanto amarrava os punhos da rede. “Eu sabia que chegaria esse dia, nunca mais vou trabalhar, vou só comer e dormir, era tudo o que eu sempre desejei para mim”. Nessa euforia ele deitou-se sem conseguir dormir direito o primeiro dia. Tudo estava dando certo, quando sentia fome uma mesa de manjares lhe aparecia à frente. Servia-se regaladamente e tornava a deitar-se. Curtiu bem essa rotina até o quinto dia, mas no sexto dia sentiu vontade de fazer alguma coisa. Ora, um cara que trabalhou desde criança, nunca tirou um dia sequer de férias para poder antecipar seu jubilamento, ia pro escritório estivesse doente ou são, chovesse ou fizesse sol, acostumado a labuta diária, de repente encarar uma ociosidade daquela começou a lhe incomodar.

Na segunda semana ele foi até a portaria e ousou perguntar. “Aqui não tem nada o que fazer mesmo, nada, nadinha?”. A resposta lhe causou pavor pelo tom de voz grosseiro “O que você está fazendo aqui? Volte para o seu lugar, aqui você nunca fará mais nada além de comer e dormir, para sempre amém. Por isso saia daqui e não me perturbe jamais”.

Ele voltou para sua rede, meio chateado com a grosseria, mas até que animado por não ter nada que fazer mesmo. Comeu e dormiu.

Um mês depois estava chateado, perturbado. Não conseguia mais dormir, não conseguia comer. Fastio e insônia era o que sentia dia e noite. “Nada o que fazer, nada o que fazer, estou ficando louco” gritava desesperado. Não suportando mais tanta nulidade arriscou ir à portaria novamente, disposto até encarar o indelicado funcionário até as últimas conseqüências. Estava mesmo enlouquecido de tanto tédio. “Eu quero alguma coisa para fazer, arranja um serviço para mim agora, qualquer coisa” exigiu. “Mas você é muito desaforado, heim? Aqui não tem nada para você fazer, volte definitivamente para a sua rede e vá dormir pelos séculos dos séculos sem fim”, ordenou o pouco simpático e gritante porteiro. Tércio, ainda mais irritado retrucou gritando ainda mais alto: “Ora, se eu soubesse que aqui era assim não tinha vindo para cá. Eu declaro a minha renuncia, mande-me para o inferno. Agora!”. O porteiro sorriu pela primeira vez, deixando aparecer seus dentes amarelados e seu hálito de bueiro e lhe respondeu com espectral sarcasmo: “Onde você pensa que está?”.

(Texto premiado no concurso litrário da CAPEF em 2007)