O HERDEIRO

- Saiam da frente!... Deixem passar!... Saiam!... Saiam!

Brandindo vara fina e lisa o pastor tentava abrir caminho no meio da multidão.

Os animais seriam abatidos para a festa de coroação de Leoncio I – o demente, rei sem glória num pedaço de terra encravado entre Espanha e Portugal, tornado independente, mais pela necessidade de um posto comercial entre os dois países, que pela vontade de seu povo, misto de agricultores e pastores, que vivia da insipiente indústria do azeite e da cerâmica.

Pouca água, muita pedra. O contrabando era a grande aspiração de todo jovem que almejava algo para si, além da vida insossa da aldeia transformada, da noite para o dia, em metrópole.

Ainda jovem Odorico perdera o pai na guerra e a mãe de parto, onde também falecera o irmãozinho.

Só no mundo tendo que cuidar da avó já muito velha, foi bater com os costados num convento, todo feito de pedras que encimava a colina de onde se dominava os arredores.

Os frades nem quiseram ouvir suas queixas...

Estavam por demais preocupados com suas próprias vidas que corriam sérios perigos pela falta constante do que comer, para se preocuparem com um rapazito magro das canelas compridas e finas como as de um veado.

Voltou para a cabana e a velha, morta, já havia sido levada pelos vizinhos para a capela do arruado.

O senhor Rodrigo, dono eventual de todas as coisas, comprometeu-se a fazer o sepultamento da velha desde que ficasse com a cabana e o terreno que ficava em local privilegiado, em frente ao pátio onde também se localizavam o chafariz, a oficina do ferreiro, a igreja, a prefeitura...

Todos de alguma forma deviam ao senhor Rodrigo e ninguém teve a coragem bastante para falar em nome do menino, que sem saber o que fazer nem para onde ir, deixou-se levar pela conversa fiada daquele homem corpulento, careca, vermelhão que entendia tudo, sabia de tudo e principalmente, tudo podia.

- Você vai ficar dormindo no curral atrás de minha casa.

Disse com voz paternal e com outra entonação, mas durante o dia não quero vê-lo rondando minha cozinha.

Já basta o que tenho que gastar com a mulher e os filhos.

Os filhos eram três, duas meninas e um menino da mesma idade que Odorico.

Carmem a filha do meio, era o anjo louro que encantava os devaneios do adolescente triplamente órfão.

Uma tigela com caldo de legumes e um pedaço de pão, tão preto quanto duro, eram parte indispensável nas ceias ao fim de cada dia.

Certo dia, Odorico pediu ao senhor Rodrigo que lhe desse algumas ovelhas para que ele tivesse seu rebanho próprio.

Ouviu um sonoro não.

Afinal o senhor Rodrigo já era muito bom em tratar-lo como filho, dormindo no curral, com palha fofa dentro do cocho vazio, além da comida que ele nada pagava... Não. Definitivamente, não.

O senhor Rodrigo era muito bom, mas não era tolo a esse ponto.

Se Odorico quisesse começar um rebanho que fizesse serviços extras após o pastoreio e com o dinheiro amealhado comprasse, ao seu protetor, uma ovelha para tal fim.

Seguindo o conselho do padre da aldeia, Odorico fez serões na oficina do ferreiro e com o dinheiro que conseguiu juntar após um ano de trabalho, saiu em viagem para comprar sua ovelha.

O dinheiro não era muito, pois tudo o que conseguia, tinha que dividí-lo ao meio com o senhor Rodrigo.

Era o pagamento pelos tempos que passou só dando despesa...

Andou bastante até encontrar os criadores que fizeram a maior gozação com aquela figura magra, mal vestida dizendo que queria comprar gado miúdo para começar sua própria criação.

Odorico tirou do bolso o saquinho de moedas e a gozação aumentou, pois o dinheiro que ele pensava ser grande coisa, mal dava para comprar uma galinha poedeira.

Mas Odorico não desistiu, pelo contrário, ofereceu-se para trabalhar para os homens, desde que conseguisse seu intento.

Dom Miguel, o mais velho dos pastores, separou um carneiro novo, com os chifres começando a apontar e disse a Odorico.

- Admiro tua força de vontade, por isso vou ajudar. Eu te vendo este borrego pela metade do dinheiro que tens. Com ele, dentro de um ano terás muitas ovelhas. Põe ele para cruzar com as ovelhas da tua terra e o pagamento será um em cada quatro nascimentos. Fique só com as fêmeas.

Odorico ainda passou alguns dias com os pastores espanhóis para aprender outras maneiras de tocar a criação.

Depois voltou para a aldeia que considerava seu lar, puxando o carneiro.

Foi direto ao Cura da Aldeia, para que ele fosse o guardião do animal e juiz, no cumprimento dos acordos.

Odorico teria que dar o dízimo para a igreja, mas era bem menos que o que teria que dar ao senhor Rodrigo, se tivesse ido direto para casa.

Conforme o que dissera o velho pastor, ele entraria com o macho de sangue diferente para melhoria do rebanho.

Os demais criadores entrariam com as ovelhas e o pagamento se daria quando o filhote estivesse desmamado.

Com mais de ano, Odorico já possuía um belíssimo carneiro lanudo, chifres bem formados e um extraordinário apetite para fêmeas.

As ovelhas que recebera em pagamento, já estavam prenhas quando ciganos, de passagem, levaram cinco dos seus animais.

Não havia a quem reclamar, não sabia em qual direção haviam ido.

Só se podia lastimar a perda, mas Odorico jamais deixava se abater ante um revés da sorte e meteu-se na estrada atrás dos ladrões.

Ia correndo, não tardou muito encontrou o acampamento em festa.

Armado com um facão, Odorico estava disposto a tudo quando foi interpelado pelo chefe do bando, que lhe explicou que os animais haviam sido comprados, a um senhor chamado Rodrigo e lhe mostrou o recibo.

O pouco que Odorico aprendeu na escola, foi bastante para reconhecer o que aquele pedaço de papel enodoado, mal escrito e amarrotado queria lhe dizer...

O senhor Rodrigo fora sempre o seu pior inimigo...

O lobo que comera dois carneiros na primavera passada se chamava Rodrigo;

O dono da metade de tudo que ele conquistara com muito esforço até tarde na ferraria, era Rodrigo;

O herdeiro universal da velha Maria, sua avó, que ficara com a casa, o terreno e o baú, era Rodrigo...

Era Rodrigo...

Era Rodrigo.

Era sempre o senhor Rodrigo, o pano de fundo para todos os infortúnios e o sócio em todas as vitórias.

Naquele instante, Odorico resolveu vingar-se de tudo que havia sofrido desde sempre.

Voltou para casa inicialmente disposto a chegar, dizer tudo ao senhor Rodrigo e ali mesmo acabar com ele.

Mas a estrada era longa e a noite fria...

O caminhar tranquilo esfriou os ânimos...

As ideias foram se ajustando como areia levada pela enxurrada que vai aos poucos enchendo os espaços vazios...

Quando chegou à aldeia, Odorico já não era mais o jovem ingênuo que saíra na véspera disposto a tudo.

Era o vingador cauteloso, que espera com calma, o momento certo para saborear o prato frio da vingança.

O senhor Rodrigo, ansioso, veio ao seu encontro para saber o que se passou, como tinha sido o seu encontro com os ciganos, mas Odorico com a mesma voz ingênua disse que achava que tinha seguido na direção contrária... Que nada havia encontrado... Quem sabe, não foi melhor assim... Deus sabe o que faz...

- É foi melhor assim. Talvez se você tivesse encontrado os ladrões, levasse a pior...

- É, mais dia, menos dia, eu pego o ladrão.

As horas se transformaram em dias, semanas, meses...

O senhor Rodrigo estava furioso, olhos injetados, esmurrando a mesa. Já havia quebrado parte dos móveis e toda louça...

Além da doença misteriosa que quase todos os dias matava um dos seus animais, agora o celeiro com feno para o inverno pegara fogo e ninguém tinha visto nada.

Com Odorico viajando, o senhor Rodrigo teria que resolver tudo só.

O filho há muito tempo tinha ido embora de casa.

A filha mais nova entrara para o convento e Carmem tentava manter a casa tal como a mãe deixara ao morrer tuberculosa.

O pior de tudo é que Odorico não podia ser responsabilizado pelos acontecimentos.

Estava sempre viajando cuidando da sua criação cada vez maior e as desgraças aconteciam um ou dois dias depois que ele saia...

Era madrugada, a aldeia toda em silêncio, ao longe o canto sequenciado dos galos...

Odorico saiu do esconderijo, com seu velho hábito feito de estopa, capuz na cabeça cobrindo até os olhos, sem se preocupar muito que fosse visto ou não, passou pelo pátio da aldeia com o passo lento dos frades e dirigiu-se à passagem que ficava ao lado da casa do senhor Rodrigo e que dava acesso ao curral e ao celeiro nessa época do ano final do outono, atulhado de feno, aveia, cevada e trigo que fora colhido no verão e no outono.

Seis meses de trabalho iriam virar cinzas...

Entrou sem fazer barulho, afastando uma das taboas já previamente despregadas.

Espalhou óleo por todo aquele amontoado de folhas secas, taboas velhas e com esmero pôs fogo de forma que nada sobrasse e que ele pudesse sair pela abertura cuja taboa foi cuidadosamente encaixada.

Desapareceu na sombra caminhando com o mesmo passo tranquilo dos bem aventurados...

Dessa vez o senhor Rodrigo ficaria na total ruína...

Deu tempo de sobra para Odorico chegar à gruta, pegar os pertences e partir a passos largos em direção ao poente, guiado pelo fiapo de lua, antes que o clarão do incêndio se misturasse ao do sol nascente.

Odorico não pode assistir, mas deliciou-se imaginando as cenas que se desenrolaram na aldeia.

A velha Corina, quando se levantou para usar o penico, ouviu o som anormal de animais em pânico.

Olhou pela fresta da janela, havia fumaça na praça e clarão bruxuleante para os lados da casa do senhor Rodrigo.

Colocou o xale sobre os ombros ossudos, abriu a porta e foi para o meio da rua.

A cena era ao mesmo tempo bela, aterrorizante e cômica.

A velha correndo e gritando como louca, cabelos desgrenhados com o xale quase a lhe chegar aos pés, a noite muito negra com poucas estrelas, um delgado fio de lua, já no ocaso, o fogo com vivas labaredas vermelhas e a fumaça branca que enchia o canto da aldeia como se fora o pano de fundo ao final de uma tragédia.

Toda aldeia acudiu aos gritos e baldes de água foram sendo levados do chafariz para o celeiro em chamas.

Depois de muito esforço, o fogo isolado extinguiu-se por si só.

Mas o estrago estava feito.

Todo o celeiro, mais a metade do curral e os animais mortos ou feridos na louca tentativa de fuga impossibilitada pelas fortes cordas que os retinham.

A ruína só não foi total porque o fogo não atingiu a casa.

Havia ainda outras propriedades, mas o senhor Rodrigo desde essa noite não foi mais o mesmo...

Já não conversava com ninguém...

Às noites, perambulava pela aldeia, como se estivesse procurando alguém...

Durante o dia ficava sentado no banco da cozinha, com os cotovelos fincados na mesa, com o olhar distante, absorto, num monólogo sem fim com alguém imaginário que por nada responder, fazia vez por outra o senhor Rodrigo falar em voz alta, irritado, palavras ininteligíveis.

Estava louco.

O homem que montara toda sua vida na ânsia de amealhar sempre mais e mais, quando viu o celeiro em chamas, sabia que além do feno, também estavam sendo consumidas pelo fogo, as suas ricas cédulas, as muitas cédulas de cem libras esterlinas que só ele sabia da existência e o local onde guardava.

Jamais poderia imaginar que Odorico sabia do esconderijo e que antes de atear fogo, aquele bastardo, havia levado a caixa de cedro onde estava a fortuna escondida no fundo falso da parede do celeiro.

A mesma parede utilizada sempre para guardar as ferramentas que o senhor Rodrigo protegia até com ameaças de morte.

As ferramentas eram marcadas e com local próprio para cada uma. Ancinho, foice, forcado, estrovenga, ceifadeira, cutelo, peças de corda feitas na própria aldeia eram guardados com mão de ferro pelo senhor Rodrigo e o seu tesouro embutido que apenas ele tinha conhecimento (assim acreditava), somente poderia ser alcançado se fossem retiradas as ferramentas, deslocada a taboa e retirado o enchimento de lã.

Ali, naquele local sagrado, estava a caixa contendo resultado da economia e da trampolinagem do senhor Rodrigo durante muitos anos. Mas Odorico sabia...

Nas noites insones, quando a adolescência estava se transformando em juventude e ele ficava pensando nas formas do corpo de Carmem e se satisfazendo solitariamente, procurou um meio de conseguir, sem ser visto, olhar para dentro do quarto das moças, que era o último da casa e forçando aqui e ali, tentando para lá e para cá criar uma fresta, notou que uma taboa larga se deslocou com facilidade, depois que tirou as ferramentas que estavam suspensas nela.

Um pouco mais de esforço apareceu o espaço vazio contendo lã e uma caixa de madeira.

Tirou a caixa do buraco e deslocou a tampa encaixada como se fosse gaveta...

Contou até onde sabia os muitos pacotes de notas amarradas.

Desejou umas para si, mas o senhor Rodrigo deveria ser o dono daquilo e Odorico não podia revelar que sabia da existência do tesouro se não seria mandado embora...

Não, não devia revelar nada a ninguém.

O segredo agora pertencia aos dois. Mais de Odorico, pois o senhor Rodrigo poderia mostrar o dinheiro a quem quisesse.

Ele jamais poderia revelar o que sabia.

O germe do ladrão começou nesse momento a se movimentar naquela cabeça até então ocupada só com o desejo de possuir Carmem.

Com o dinheiro agora enterrado no fundo da gruta, coberto com grossa camada de pedras, sendo dono do seu presente e talvez do futuro, Odorico falou a Carmem que deveriam levar o senhor Rodrigo para o asilo onde os médicos pudessem dar um paradeiro naquelas alucinações.

O Cura da aldeia disse que o senhor Rodrigo estava sofrendo de histeria, que passado o choque ele haveria de melhorar.

Por causa do incêndio, da doença e da falta de lugar para ficar, Odorico passou a dormir na sala da casa onde antes, Natanael o filho único do senhor Rodrigo, havia dormido.

Banco longo, largo com braços e encosto alto e foi nesse banco que certa noite, Odorico acordou com o roçar dos peitos de Carmem em seu rosto.

O senhor Rodrigo roncava no quarto ao lado enquanto Carmem gemia sob o macho Odorico, que tinha o cheiro acre dos carneiros, entranhado na pele queimada pelo sol.

No dia seguinte, levaram o senhor Rodrigo para o hospício que ficava bem distante.

O tempo que não pára, continuou dando voltas...

Agora Odorico vivendo livremente com Carmem e os filhos do casal era um próspero criador que, junto com os demais homens influentes, cujos pais e avós forçaram os reis de Portugal e da Espanha, a formarem uma cidade estado, independente, aparentemente neutra, que serviria de posto alfandegário entre as duas nações, que tantas vezes tiveram que ir à guerra, para resolver pequenos problemas que seriam muito bem resolvidos com uma caneca de vinho, ao invés de espadas ou canhões.

Após a coroação de Leoncio I, conhecido como o demente, a cidade seria na verdade, governada por um conselho de notáveis, vez que Leoncio não passava de um adolescente mimado e manipulado por cortesões, que lhe faziam todas as vontades.

Odorico já se notabilizara nesse conselho, pelas observações acertadas e pela presteza com que resolvia problemas intrincados.

Tinha livre trânsito na corte e nos acampamentos de ciganos.

Era conhecido, respeitado e acima de tudo temido.

Seus hipotéticos inimigos sempre tinham fins trágicos.

Sofriam acidentes, desapareciam e sempre ficava provado que Odorico, não tinha nada a ver com isso, muito menos participação.

Em tudo agora Odorico era o herdeiro universal do senhor Rodrigo, que morrera no hospício, sem conseguir entender o porquê de sua ruína.